A internet, como ferramenta de uso civil, tomou forma e se constituiu nos anos 90 como objeto de aproximação entre os sujeitos. Sejam eles de culturas distintas ou semelhantes. A Geração Y, a primeira a crescer e ser alfabetizada tendo a rede inserida em seu cotidiano, agregou os valores libertários ao meio digital.
Para essa geração, a internet representa muito mais do que um meio de comunicação. Em seu imaginário, a internet é uma ferramenta que lhe permite interagir com a sociedade, mas com regras sociais diferentes das encontradas no mundo físico. Se, para essa geração, o mundo físico nos limita a ideias conservadoras da sociedade, em que as nossas ações – sucessos e falhas – são carregadas para o resto da vida, a ponto de se criar um histórico positivo ou negativo de nossa vida, é no mundo digital, mais especificamente na internet, que encontramos a liberdade para testar e, até mesmo, errar.
“Para muitos jovens, a internet é uma forma de autorrealização. Ela lhes permite explorar quem eles são e quem querem ser, mas isso só funciona se pudermos ter privacidade e anonimato, se pudermos cometer erros sem que eles nos acompanhem. Fico preocupado ao pensar que a minha geração pode ter sido a última a gozar dessa liberdade” (Edward Snowden).
O pensamento de Snowden pode parecer apocalíptico para o senso comum. Comunicação instantânea, transações bancárias, facilitação de pesquisas e empreendimentos. Tudo isso são benefícios inimagináveis antes do surgimento da internet. Porém, ela também se mostrou como uma ferramenta sofisticada para a coleta de dados civis.
O panóptico
No século 18, um filósofo inglês chamado Jeremy Bentham apresentou um projeto arquitetônico de um edifício carcerário que garantia o bom comportamento dos detentos. O projeto partia do princípio de que se os detentos sentissem estar constantemente em observação, a probabilidade de que eles agissem fora do comportamento padrão – imposto pela casa carcerária – seria extremamente reduzida. Esse projeto ganhou o nome de panóptico.
“Quanto mais constante as pessoas a serem inspecionadas estiverem sob vista das pessoas que devem inspecioná-las, mais perfeitamente o propósito do estabelecimento terá sido alcançado. A perfeição ideal, se fosse esse o objetivo, exigiria que cada pessoa estivesse realmente nessa condição, durante cada momento do tempo” (Jeremy Bentham).
Em sua época, Bentham assume que o panóptico pode ser implantado em qualquer área social. Do sistema carcerário ao administrativo. Logicamente, não tinha como Bentham imaginar a internet. Porém, após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA), pensou ser uma boa ideia aplicar o panóptico de Bentham a esse meio.
São diversas as pesquisas no ramo da psicologia que comprovam que, sob suspeita de estarem sendo observadas, as pessoas se limitam a fazer o que é aceitável pelo status quo. Sendo assim, ela fica inibida de se arriscar e alimentar o seu conhecimento e imaginação. Essa questão é também problematizada pelo próprio Bentham, quando ele propõe que o panóptico seja aplicado às instituições de ensino.
“Será que o espírito liberal e a energia de cidadão livre não seriam substituídos pela disciplina mecânica de um soldado ou austeridade de um monge?” (Jeremy Bentham).
Se a aplicação do panóptico é capaz de interferir na criatividade e liberdade da sociedade, não seria exagero afirmarmos que, para o jornalismo, a prática fere o princípio de liberdade de imprensa e sigilo de fonte. Uma vez que a sociedade tem o conhecimento de que os seus metadados são coletados por agências e empresas, ela pode ficar inibida em ter um comportamento desviante do considerado aceitável. E se ela estiver diante de provas concretas, que joguem luz no que o governo faz às sombras, ela pode se omitir ou destruir as provas, pois tem a consciência de que, uma vez vigiada, ela também poderá ser rastreada e sofrer as consequências de um Estado que é mais autoritário do que demonstra ser.
O amedrontamento da fonte pode ser a principal perda para o jornalista em um Estado de vigilância. Mas também devemos levar em conta que o próprio jornalista pode se sentir amedrontado. São inúmeros os casos em que jornalistas são assassinados devido ao seu trabalho.
O jornalismo no meio disso tudo
Temos dois casos recentes sobre vazamento de documentos secretos que comprovam o autoritarismo dos Estados da democracia ocidental e que tiveram jornalistas e fontes criminalizados. O primeiro caso são as filmagens vazadas pelo soldado Bradley Manning – hoje Chelsea Manning – ao WikiLeaks. Na ocasião, o vídeo de um helicóptero na Guerra do Iraque mostrava soldados estadunidenses matando civis iraquianos e dois jornalistas da Reuters.
Chelsea Manning foi rastreada e identificada pela agência de espionagem estadunidense devido ao uso de um chat. Hoje, a fonte está presa, com uma pena de 35 anos de reclusão por vazamento de documentos secretos. Julian Assange, fundador do WikiLeaks, encontra-se exilado na embaixada do Equador em Londres. Caso saia, corre o risco de ser extraditado para a Suécia e, posteriormente, para os Estados Unidos, onde deverá ser julgado pela divulgação – e facilitação no vazamento – de documentos secretos do Estado.
O mesmo ocorreu no caso de Edward Snowden. Ex-agente da CIA e prestador de serviços para a NSA, ele vazou documentos ultrasecretos que revelavam a abrangência da agência de espionagem. Snowden foi considerado traidor da pátria e terrorista e agora encontra-se exilado na Rússia. Glenn Greenwald e Laura Poitras, respectivamente jornalista e documentarista envolvidos no caso, também foram taxados de terroristas e acusados de incentivarem o vazamento dos documentos confidenciais. Ambos passaram por vigilâncias severas quando voltaram aos Estados Unidos.
Em seu livro Sem Lugar Para se Esconder, Greenwald faz uma crítica sobre a seletividade na hora de criminalizar os vazamentos de documentos governamentais. Os vazamentos que enaltecem o Estado, diz ele, são aplaudidos e premiados. Enquanto os que rompem com o status quo e mostra o Estado que age às sombras, é rapidamente condenado e crucificado. “Os únicos vazamentos que a imprensa de Washington condena são os que contêm informações que os funcionários do governo prefeririam ocultar”, diz Glenn Greenwald.
Ambos os casos demonstram um Estado que se baseia na vigilância para identificar e punir os dissidentes. Os jornalistas que ousam desafiá-lo são criminalizados, enquanto as fontes chegam a sofrer punições mais severas. O Estado de vigilância silencia aqueles que trazem à luz as suas ações. Ele trabalha para que ele consiga ver a sociedade, sem que ela o veja. Assim como o panóptico de Jeremy Bentham.
“Ninguém precisa que a Constituição norte-americana garanta a liberdade da imprensa para os jornalistas poderem ser simpáticos e divulgarem e glorificarem os líderes políticos; a garantia é necessária para que os repórteres possam fazer o contrário” (Glenn Greenwald).
Por isso devemos sempre nos questionar: somos livres de fato? Se acaso a resposta for não, então está na hora de retomarmos a nossa liberdade. A internet fez com que o autoritarismo estatal seja silencioso, quase imperceptível. Mas a censura do jornalismo não se dá apenas com a presença de generais dentro das redações.
Bibliografia
BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. 2ª Edição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2008. 199 p.
GREENWALD, Glenn. Sem Lugar Para se Esconder: Edward Snowden, a NSA e a espionagem do governo americano. Tradução de Fernanda Abreu. Rio de Janeiro: Sextante, 2014, 288 p.
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André Quintão da Silva é estudante