Todo mundo conhece o conto dos três porquinhos. Resumindo, os três bichinhos resolveram construir cada qual sua própria casa na floresta. O primeiro construiu uma cabana de palha, o segundo, de madeira e o terceiro, de alvenaria. Um lobo mau das redondezas via neles três suculentas refeições e resolveu devorá-los. Ao atacar a cabana de palha do primeiro, pouco resistente, num único sopro o lobo derrubou-a e o porquinho teve que se refugiar na casa do irmão, a de madeira, que o lobo em pouco tempo destruiu. Os dois desabrigados correram à terceira casa, de alvenaria, e por mais que o lobo tentasse derrubá-la, não conseguia. Moral da história: uma casa resistente pode livrar-nos dos instintos de um lobo mau e mal intencionado que sempre está a nossa espreita.
O discurso da perseguição ao ‘lobo mau’ tem sido repetido como forma de solucionar os atuais problemas da segurança pública paulista que, no fim de semana das mães resultaram na morte de cerca de 60 pessoas, no incêndio de dezenas ônibus e mais de uma centena de tumultos em todo o estado. As autoridades têm insistido em reforço de policiamento e blitzes nas principais vias de acesso à capital. O jornalismo, por sua vez, tem incorporado o mesmo discurso de proteção ao cidadão contra o crime organizado.
Mas não é nova a questão da segurança pública. Quando vem à tona, porém, é tratada pela imprensa ora como caçada a criminosos, ora como isolamento do cidadão em prédios equipados de câmeras pan-ópticas de alta tecnologia.
Para essa parte da imprensa é como se todos pudessem construir fortalezas de alvenaria e a polícia devesse estar sempre pronta para perseguir ‘lobos maus’. Claro que a proteção ao cidadão é inquestionável num momento como este, mas, mais do que isto, é inquestionável a obrigação de a imprensa proteger a cidadania – e todos os cidadãos – em todos os momentos. E nisso o jornalismo tem não tem cumprido suas responsabilidades.
O descaso das elites
A história dos três porquinhos não se aplica às sociedades humanas. Lobos perseguem porcos como raposas perseguem aves, como ursos perseguem javalis. Alguns canais de TV a cabo nos mostram tais cenas diariamente e isso não nos choca, porque é a lei da selva, é o instinto animal na mais pura demonstração de funcionamento da cadeia alimentar. Mas humanos não são assim. Nós não nos matamos para nos comer.
Em casos como os que agora sobressaltam Paulo, fica claro que os humanos se matam por questão cultural. É a cultura da violência que nos assola numa de suas piores faces, e a questão precisa ser discutida de forma ampla pelo jornalismo. Em vez de reproduzir a história dos porquinhos e do lobo mau, é necessário que a imprensa toque nas feridas. De onde vem a violência? Teria base na omissão e nos maus exemplos de impunidade? Lembro-me do excelente Jurandir Freire que, num texto sobre a questão das desigualdades sociais brasileiras (O desafio ético, Ed. Garamond, 2000), aponta que as elites nacionais sofrem de um completo ‘alheamento em relação ao outro’ e de uma irônica ‘irresponsabilidade em relação a si mesma’.
Para o autor se, por um lado há uma violência que sobressalta a vida dos ricos, por outro, há também uma violência que estes cometem contra os pobres ao lidar com a miséria e a indigência como naturais. Nesse ponto, ele observa que está na hora de a própria elite assumir suas responsabilidades. Se não pelo outro, pelo menos por si mesma:
Sem uma discussão dos valores ou do quadro institucional que nos constitui enquanto sujeitos sociais, inclusive e especialmente em nossa vida privada, dificilmente conseguiremos retirar as elites da inércia auto e heterodestrutiva. Sem um esforço para concebermos novas formas de relações familiares, novas modalidades de relações sexuais, afetivas e amorosas; novos estilos de convivência e sociabilidade; novas atitudes diante do progresso científico e tecnológico; novas atitudes diante da transmissão do saber e da tradição democrático-humanista que é nossa, dificilmente poderemos produzir o encantamento necessário à paixão transformadora capaz de restituir à figura do próximo sua dignidade moral. O caminho é longo e penoso. Mas navegar é preciso, e sem uma bússola na mão e um sonho na cabeça nada teremos, salvo a rotina do sexo, droga e credit card. (P. 88).
Hora de parar
Claro que há crime organizado e criminosos, mas também há – além do clima de bandalheira instaurado pela impunidade de setores das elites – muita pobreza, fome, miséria, falta de escolas, de saúde e de expectativas de vida por trás de muitos desses crimes. Talvez, como às vezes penso, parte disso tudo pode ser uma resposta a violências anteriores praticadas pelas nossas elites econômicas e por suas representações políticas que reagem com o mais completo descaso ou faz-de-conta em relação a uma população cada vez menos (e aqui falo de qualidade) instruída e mais miserável. É este quadro que o jornalismo tem que discutir com seriedade e propriedade nas telas de TV e nas páginas dos jornais.
Como dizia Karl Marx, os grupos economicamente dominantes de uma sociedade são também os grupos politicamente dominantes. Não dá para ficarmos, como se fossemos porquinhos, reforçando a segurança das casas de alvenaria esperando que o lobo mau não venha a derrubá-la. O ideal é desenvolvermos a consciência de que somos seres humanos, e não porcos ou lobos… E gente não devora, culturalmente não se alimenta de gente. Pelo contrário, gente se respeita e constrói cidadania.
Um jornalismo que queira estar, de fato, a serviço da segurança pública e da cidadania não trata seus cidadãos como porcos e lobos. Está na hora de a imprensa parar de reproduzir contos e agir em nome dos direitos (dos) humanos.
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Jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pela USP, especialista em Jornalismo Político e Econômico; professor de Jornalismo em São Paulo e pesquisador das relações entre cidadania, educação e imprensa