Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O jornalista encrenqueiro

No norte do Brasil, empresários mal-intencionados, políticos corruptos, devastadores da floresta amazônica e outros pulhas têm no jornalista Lúcio Flávio Pinto um adversário firme, sempre disposto a encará-los na arena da informação. Há 23 anos, ele edita em Belém, capital do Pará, o Jornal Pessoal, que é o que todo jornal digno desse substantivo deve ser: um combatente tenaz contra o atraso.

Quinzenal, doze páginas em tamanho ofício, dois mil exemplares por edição, sem anúncio e assinatura, mantido apenas com a venda em bancas e livrarias, por três reais. Nanico só no formato, é uma fonte confiável de informações, o que no Brasil é mais raro do que o canto do uirapuru.

Como publicar verdades não é fácil, Lúcio Flávio Pinto é mais perseguido por potentados locais do que o galo-da-serra por cinegrafistas do Globo Repórter. Responde a dezenove processos movidos por diretores das Organizações Romulo Maiorana, maior grupo de comunicação do norte brasileiro, donos da TV Liberal, filiada à Rede Globo, do jornal O Liberal e de emissoras de rádio. Em 2005, foi agredido fisicamente por um deles.

O motivo, diz o jornalista, é a publicação no Jornal Pessoal de verdades incômodas a membros das Organizações Maiorana, como o envolvimento de Romulo Maiorana Júnior e Ronaldo Maiorana em fraude para receber dinheiro de incentivos fiscais da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). “Posso provar – como tenho provado em juízo – tudo o que publico. Nunca fui desmentido sobre fatos. O que eles querem é me amordaçar, em plena democracia.”

Em entrevista exclusiva, Lúcio Flávio Pinto fala sobre o Jornal Pessoal, sobre a peleja contra os Maiorana, sobre a operação da empresa Vale no Pará e sobre o ofício de informar. Todo jornalista, diz, tem o dever de ser auditor do cidadão contra o poder.

***

Faça um resumo desse embate jurídico contra os Maiorana.

Lúcio Flávio Pinto – Devo dizer primeiro que me tornei jornalista profissional em 1966, dois anos depois do golpe militar que depôs o presidente João Goulart, pondo fim à República de 1946, até então o mais longo período de democracia no Brasil. Desse ano até a volta ao regime democrático, em 1985, fui processado uma vez, pela Lei de Segurança Nacional, em 1976. Fui absolvido pela Auditoria Militar. De 1992 até agora, fui processado 33 vezes e condenado quatro vezes, mas, como as sentenças não chegaram a transitar em julgado, permaneço réu primário. Desses 33 processos, 19 foram propostos pelos donos do maior grupo de comunicação do norte do Brasil, que é filiado à Rede Globo de Televisão, sendo que 14 dessas ações surgiram depois que um dos donos dessa corporação, Ronaldo Maiorana, me agrediu fisicamente, em 2005, dizendo-se contrariado por matéria do meu Jornal Pessoal.

Como foi essa agressão?

L.F.P. – Insólita. Eu é que fui vítima de violência física, que teve a cobertura de dois homens da Polícia Militar, transformados em seguranças privados, capangas. Mas o autor da agressão e seu irmão, Romulo Júnior, é que me processaram. Três dessas ações, pelo “crime” de ter declarado que fui espancado, quando, no argumento deles, fui “apenas agredido”. Kafka em pleno tribunal, sem intenção artística. O objetivo era óbvio: inverter os pólos, a vítima passava a autor do crime. E continuar a me desviar da minha atividade profissional, mantendo-me atado a processos judiciais. Mesmo sendo donos de vários veículos de comunicação, os Maioranas – como todos os autores das outras demandas judiciais – jamais usaram o direito de resposta ou contestaram o conteúdo das minhas matérias. Sabem que posso provar – como tenho provado em juízo – tudo que publico. É uma diretriz de 45 anos de profissão. Nunca fui desmentido sobre fatos. O que eles querem é me amordaçar, em plena democracia, a mais longa da história republicana brasileira. Contando com a ajuda de integrantes do poder judiciário. Meu caso serve de exemplo sobre as limitações e contradições da nossa frágil democracia.

Recentemente, o juiz federal Antônio Campelo tentou impor-lhe, segundo suas palavras, “a mais drástica censura à imprensa já aplicada no Brasil pela via judicial”. Explique o caso.

L.F.P. – O juiz quis me impedir de continuar a noticiar sobre um processo movido contra os dois irmãos Maioranas por crime contra o sistema financeiro nacional. Eles recorreram a fraudes para ter acesso ao dinheiro da Sudam para implantar um projeto de sucos regionais na área metropolitana de Belém. Convencido da fraude, exaustivamente provada em investigação da Receita Federal, em 2008, nove anos depois do crime, o Ministério Público Federal propôs contra os empresários uma ação penal pública. É bom ressaltar: pública. Claro: o dinheiro malversado resulta de renúncia fiscal do tesouro nacional, dinheiro do contribuinte usado como colaboração financeira com empreendimentos privados considerados de interesse para o desenvolvimento da Amazônia. Os dois já haviam faltado a duas audiências. Parecia que na terceira eles se veriam diante de uma atitude enérgica por parte do juiz. Ficara evidente o propósito de escapar da punição através do protelamento da instrução processual. Queriam chegar à prescrição. Ao invés disso, o juiz Antônio Campelo foi condescendente. A tal ponto que admitiu a terceira falta de um dos Maioranas, que passava férias em Miami, mesmo tendo sido intimado da audiência cinco meses antes. Só um deles, Ronaldo, compareceu e confessou o crime. Terminada a audiência, o juiz declarou segredo de justiça, mas não fez qualquer comunicação pública a respeito. Quando revelei em detalhes o conteúdo da audiência, ele ficou furioso e mandou uma intimação para mim. Ameaçou-me com prisão em flagrante, instauração de processo criminal por quebra de segredo de justiça e multa de 200 mil reais. Era não só um absurdo como uma violência legal, um ultraje à Constituição, que assegura a liberdade de imprensa, e uso indevido do segredo de justiça. Não aceitei a atitude do juiz e a denunciei ao mundo pela internet. Três dias depois de ter tomado a decisão, o juiz federal de Belém a revogou parcialmente. Liberou o processo, mas manteve a proibição quanto a questões bancárias e financeiras. O meio veto continuava indevido porque toda a produção de provas do processo já foi realizada e os documentos são públicos. Decidi então lançar uma edição especial do Jornal Pessoal dedicada ao episódio. O juiz não voltou a se manifestar.

O poeta inglês Kingsley Amis dizia não fazer muito sentido escrever se não for para incomodar alguém. No jornalismo, é possível comunicar algo que valha a pena ler ou ouvir sem mexer em problemas?

L.F.P. – Bertolt Brecht dizia que o homem feliz é aquele que ainda não recebeu a última notícia e que a ingenuidade era uma prova de insensibilidade. Ele viveu em tempos sombrios, num tempo de guerra. Nós, aparentemente, vivemos num tempo muito melhor do que aquele que inspirou seus melhores e mais tristes versos. No entanto, é uma era de conformismo, de egoísmos, de brutalidade, de paradoxos, de abuso de poder. Talvez estejamos preparando um tempo pior do que aquele do “pintor de paredes”, conforme Brecht tratava o bestial Adolfo Hitler. Mas sempre há tempo para flor, para sorrisos, para pureza. Eu gostaria de elogiar mais e criticar menos. Mas assim trairia o principal compromisso do jornalismo: ser o auditor do cidadão contra o poder. Millôr Fernandes já disse: “Jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. Não é exatamente isso, mas é quase isso.

Qual sua opinião sobre aqueles jornalistas que abdicam da altiva função de publicar verdades, podendo contribuir na melhoria do país, para simplesmente bajular gente com poder?

L.F.P. – Há lugar no mercado para todas as opções. Essa não é a minha. Não invejo os que obtiveram sucesso e dinheiro cortejando os poderosos. Em mim, há uma compulsão para desafiá-los ao menos num terreno: o das informações. Se manejam o interesse público ou utilizam recursos públicos, quero que prestem contas dos seus atos. Um amigo e, ao mesmo tempo, objeto das minhas críticas dizia que preferia ser criticado mesmo. E explicava por quê: depois de uma linha de elogio vem a vírgula e a partir daí é só crítica, dizia, bem-humorado. Permanecemos amigos e adversários até ele morrer. Um caso exemplar, mas raro.

O Jornal Pessoalnão publica anúncio, se mantém graças à venda em bancas e livrarias. É impossível conciliar anúncios com bom jornalismo?

L.F.P. – É possível, mas é preciso que a empresa jornalística tenha estrutura para não criar dependência de poucos grandes anunciantes, o maior dos quais, no Brasil, costuma ser o governo. Tinha que viver só de muitos pequenos anunciantes, o que hoje é muito difícil e improvável. Depois de 21 anos com um pé na grande imprensa e outro na imprensa alternativa, decidi colocar o corpo inteiro num projeto jornalístico de autonomia radical. Resolvi que não teria anúncio algum para não criar relação sequer de amizade ou sentimental e poder publicar todos os fatos relevantes que apurasse. Para isso, meu jornal teria que ser o mais barato do mundo, com uma única pessoa a fazê-lo, mais um irmão, responsável por ilustrar e diagramar o jornal, sem cor, em formato pequeno, sem assinatura, exceto durante o período em que usei meu Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, 19 anos no Estadão, para financiá-lo. E assim o Jornal Pessoal se tornou a publicação da imprensa alternativa brasileira de maior duração.

O senhor trabalhou no jornal O Estado de S. Paulo. A chamada grande imprensa é mesmo uma grande imprensa?

L.F.P. – Na maioria das vezes, imprensa grande. Mesmo o Estadão já teve seus momentos de grande imprensa, com Cláudio Abramo sob Júlio de Mesquita Filho e durante a ditadura, sob o Júlio Neto. Hoje, o jornal é útil, deve-se lê-lo, mas ele perdeu em tutano, em gravitar em torno dos fatos, mesmo os que se chocam com o que a “casa” diz em sua página de editoriais. Mesmo assim, é um dos melhores jornais brasileiros, talvez o melhor no momento, mas degraus abaixo do que era o padrão da grande imprensa na época do regime militar. Saía menos do que devia, mas forçava-se até o limite da rebelião para que saísse muita coisa.

O senhor venceu o Prêmio Esso de Jornalismo quatro vezes, entre outras honrarias. Mais importante, é um jornalista com credibilidade, coragem e competência. Fale-nos sobre isto: o prazer de ser respeitado em sua profissão.

L.F.P. – O maior elogio que recebi me foi mandado por Delfim Neto quando era o todo-poderoso ministro do governo militar. Uma noite Roberto Appy, da seção econômica do jornal, chegou, se sentou à mesa onde nos mantínhamos por algum tempo depois de fechar a edição do dia e disse que Delfim, lendo uma matéria sobre a manipulação do índice da inflação de 1972, que eu pautara e coordenara, comentara: “Já enfrentamos repórter, editor e dono de jornal. Agora é a vez do pauteiro”. Ouvi e reagi: era o melhor elogio que eu podia receber. Appy se foi, mas antes deu um tapinha no meu ombro, como aprovando minha atitude. Nada é melhor para um jornalista do que ser respeitado e, se possível, temido pelos poderosos. O Jornal Pessoal é uma publicação rústica, primária. Mas está no clipping dos poderosos que agem na Amazônia. E sob sua mira, quando o caso. Se eu errar, vêm em cima.

Se o jornalismo brasileiro fosse melhor, o Brasil estaria melhor?

L.F.P. – Sem dúvida. Há um componente pedagógico no jornalismo, que devia ser considerado tão importante quanto vender mais, conseguir mais anúncios, impressionar. Quando um tema árido é o mais importante da quinzena, eu não tenho dúvida em colocá-lo na capa, mesmo que o preço a pagar seja vender menos, ou dar grande espaço a uma questão econômica, tecnológica, científica. Se o leitor não se interessar ou achar chata a matéria, é problema dele. Fiz a minha parte: alertá-lo para a relevância ou gravidade do assunto.

A empresa Vale, que extrai minério em Itabira desde 1942, lucra bilhões de reais anualmente na cidade e causa um gigantesco impacto ambiental: paisagem brutalmente desfigurada, assoreamento de córregos, poluição do ar, casas trincadas pela detonação nas minas, comprometimento no abastecimento futuro de água, entre outros problemas. O que a empresa retorna a Itabira, diante do que lucra na cidade, é faísca de migalha. Soma-se a isso um governo municipal danado de incompetente, obscurantista, que administra mal, muito mal, o dinheiro público. A Vale também retira minério no Pará. Como vê a operação da empresa em seu estado?

L.F.P. – Carlos Drummond de Andrade lamentou que, com a lavra no Pico do Cauê, Itabira se tornara um retrato dolorido na parede. Se ele viesse a Carajás, no sul do Pará, teria um choque maior ainda. É a melhor jazida de minério de ferro do mundo. Quando começou a ser lavrada, em 1984, devia durar pelo menos 400 anos. Hoje, a previsão é de menos de um século. No ano passado dela saíram 100 milhões de toneladas. É o equivalente à produção americana do pós-guerra. Para que essa hemorragia de riqueza natural se mantenha, o maior trem de carga em operação no mundo faz nove viagens diárias entre a mina e o porto, em São Luís do Maranhão. O Pará se tornou o quinto maior exportador do Brasil e o segundo estado que mais fornece divisas ao país, abaixo apenas de Minas Gerais. Mas é o 16º em desenvolvimento humano, o 21º em PIB per capita e o quarto em violência, embora tenha a nona população do país. O modelo colonial do qual a Vale é o expoente responde por essa situação absurda. É um crescimento a rabo de cavalo: quanto mais cresce, mais vai para baixo.

******

Editor de O Trem Itabirano