Em “Ciência e tecnologia desalinhadas com a sociedade” (Correio Braziliense, de 06/11/2015), o físico Paulo Rogério Foina teve sabedoria e coragem ao afirmar que “publicar artigos em revistas, formar doutores e mestres, participar de congressos é importante, mas não para quem está desempregado ou padecendo num hospital, ou passando fome, ou sofrendo com as greves dos professores, ou gastando quatro horas por dia em ônibus velhos e metrôs sufocantes. Se quisermos ser reconhecidos pela sociedade, precisamos ser importantes para ela”.
Uma ciência afastada do seu papel social transformador encontra eixo de sustentação no perigoso elogio do distanciamento como virtude avaliativa. Elisa Pereira Gonsalves, autora do livro Iniciação à Pesquisa Científica (2003), não acredita que a “separação” seja uma condição necessária para que possa emergir um olhar mais crítico sobre a pesquisa. A pedagoga defende a subjetividade como ética do envolvimento científico, o que revela compromisso direto do cientista com a realidade que o afeta de verdade. “Estar envolvido” – ressalta Gonsalves – “significa assumir uma condição que é natural ao ser humano: a condição do estar-junto, a condição de pertencer existencialmente a uma sociedade.”
O poeta Nelson Maca, no livro Gramática da Ira (2015), dedica um dos seus escritos para problematizar o fazer científico que examina a realidade como se fosse um mero objeto de estudo, sem se ater, portanto, à rede de valores complexos que a englobam como causa vital. Especificamente, no poema “Os doutores”, a voz poética de Nelson Maca questiona a rede de estudiosos que não moram no problema étnico-racial e, mesmo assim, estabelecem julgamento de fato e julgamento de valor sobre o referido tema em questão:
“Nunca deixo de ouvir com atenção as palavras dos doutores/bem informados/Eles dizem conhecer as armas apropriadas para mudar/o estado das coisas/Tento esquecer que seus corpos lisos aprenderam a viver/em palácios erguidos/Das pedras trazidas nos lombos de escravos/Dos braços de minha família subempregada/Irmãos bem intencionados que mesmo sem saber quem sou/falam em meu nome/Mas não me arrancam da fila de espera/Mas não provam o amargo de minha sopa de perdas/Os que se especializaram virando as sobras das latas de europa/Os que se empenham no financiamento de sua mais nova teoria/de minha vida concreta/Os que desfilam em jornais sua negritude estampada/em batas importadas da África/Na harmonia de seus gestos de superfície entalhados ao longo/de séculos de contato/Na boa aparência de seus pelos tosados ocultando/os últimos vestígios do pixaim/No verniz dos sapatos que há muito aboliram a caminhada/sobre a lama rebelde da favela.”
A atividade interpretativa da mente
Nas entrelinhas desta composição literária está sendo questionada também a distinção consagrada entre sujeito e objeto de pesquisa. No fundo, a relação sujeito-objeto se desenha como continuum intimamente interligado. Nesse sentido, esclarece Gonsalves, “todo esforço de compreensão do mundo advêm de um estado contemplativo, que modifica o que vê. Isso significa que, aquilo que muitos denominam de ‘coisa em si’ é sua própria interpretação. Fazer ciência é, portanto, um exercício de criação e de admiração”. Uma ciência realizada com êxito só é possível com dedicação científica plenamente identificada com a razão substantiva dos seus estudos. A partir dessa observação, conseguimos atingir melhor a luz da justa reivindicação expressa no citado poema de Nelson Maca:
“Como posso estar com quem só se reconhece no espelho/da civilização alheia?/Se já renegam o ritmo do samba/Se não suportam o suor do candomblé/Se o jazz de salão é o limite da expansão de sua identidade/afro-revolucionária/Se estampam na parede o mesmo velho rei do rock de pele branca/e ginga negra/Se julgam o carnaval a cachaça e a bola o último reduto/e recurso dos miseráveis/Suas palavras proferidas do alto é seu único ponto de encontro/com a negrada/Mas somente palavras solidárias nunca deitaram café sobre a mesa/Nunca estenderam a manteiga no pão/E o caminho que nos apontam serve para catar as sobras do modelo/de vida deles/E o ato que de nós esperam é o mais caloroso aplauso/para as altas falas deles/E a africanidade que lhes resta não ultrapassa as lindas estampas daquelas belas batas”.
A afetividade, portanto, expressa o verdadeiro compromisso do cientista com o seu trabalho de investigação constante sobre os traços elementares e complexos que tecem a existência do real em suas sutilezas e evidências mais visíveis. O elogio ao distanciamento como supremo critério de conduta científica valoriza muito mais as luvas do que as mãos enquanto medida de toque para conhecer melhor a verdade. A realidade precisa contagiar o cientista, pois a contaminação não passa pelo envolvimento profundo, mas sim pelo distanciamento protocolar e superficial que constrange o entendimento da complexidade fenomenal da matéria examinada. A respeito, Antonio Damásio, em O erro de Descartes (1996), sustenta a tese de que os sentimentos apresentam um estatuto privilegiado, pois são responsáveis diretos pela condição de anterioridade no tocante ao desenvolvimento da atividade mental: “Eles têm sempre uma palavra a dizer sobre o modo de funcionamento do resto do cérebro e da cognição.”
A emoção é o controle de qualidade da razão. Ela apresenta um “quadro de referência” capaz de viabilizar a atividade interpretativa da mente. Nem distanciamento, nem separação, nem controle de afeto favorecem o fazer científico “antenado” com o desenvolvimento social. O percurso teórico-metodológico da investigação científica deve contemplar a apuração subjetiva de nossos conceitos em prol de uma cultura mais afastada de preconceitos e generalizações precipitadas. Graças à subjetividade, a ciência se coloca como ofício movido pelo afeto nosso de cuidar melhor da vida em plenitude.
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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor universitário, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários