A declaração de princípios editoriais publicada pelas Organizações Globo neste final de semana deve ser analisada no seu contexto mais do que pelo seu conteúdo. Isto implica um exercício um pouco mais complicado do que a mera interpretação de um texto que, tirando algumas referências à internet, poderia ter sido publicado há 10 ou 20 anos.
O documento produzido pelos diretores da área jornalística reproduz o discurso convencional em matéria de definições, normas, procedimentos e valores da prática do jornalismo com exceção da parte relativa à participação do público na produção de notícias. Neste item o texto deixa em aberto a possibilidade do jornalismo ser praticado por amadores, o que pode criar atritos com os sindicatos da categoria.
Há vários outros pontos onde provavelmente surgirão debates acalorados sobre como, quando e com que objetivos deve ser exercido o jornalismo. Mas o mais importante não consta do texto do documento. É a conjuntura na qual a atividade jornalística está sendo exercida depois do início da revolução tecnológica, responsável pela avalancha informativa que está alterando os conceitos convencionais de informação, comunicação e principalmente de jornalismo.
Sem mencionar o que realmente está por trás da declaração de princípios jornalísticos, as Organizações Globo abriram um espaço para que a contextualização possa ir além do que os autores do texto pretendiam. E é isto o que faremos. O texto parte de uma realidade informativa em profunda transformação. A batalha pelo poder é hoje a batalha pelos corações e mentes das pessoas. Para ganhar corações e mentes é preciso usar a informação, por isto ela tornou-se estratégica.
Jogo de poder
A política na sociedade em redes passou a ser basicamente a política da informação e da comunicação, substituindo a que ainda é praticada nos ambientes políticos tradicionais como os partidos, parlamentos, organizações sindicais etc. Hoje, a matéria-prima da política é a informação e não mais apenas ideologia. Com isto, os veículos de comunicação passaram a ter uma centralidade inédita na luta pelo poder, o que contraria frontalmente a tese da isenção, reafirmada pelo documento da Globo.
É uma realidade que ultrapassa a vontade ou o controle dos executivos dos grandes conglomerados e também das pequenas empresas jornalísticas. Não se trata da mera politização da imprensa, mas do surgimento da informacionalização da política, segundo definição do sociólogo espanhol Manuel Castells. A política contemporânea passou a ser condicionada pela onipresença da informação e pela multiplicação dos veículos de comunicação. Por isto, é até ingênuo querer ver o jornalismo como um mundo à parte do espaço político contemporâneo.
Os políticos transformaram a informação numa arma na luta pelo poder, já que as plataformas ideológicas perderam relevância e diferenciação. Esta estratégia teve como consequência inevitável o uso da informação para denúncias de corrupção e para a prática do que passou a ser chamado de assassinato de reputações, ou seja, estratégias para destruir a reputação individual de adversários políticos. Criou-se um estoque de denúncias para ser usado no momento mais adequado. Guarda-se munição informativa da mesma forma que se guardava pólvora em paióis militares.
Crise de valores
O denuncismo tornou-se corriqueiro e rotineiro, com o apoio de vários órgãos da imprensa como a revista Veja que o transformou em estratégia comercial para incrementar sua declinante circulação. A Globo também não ficou imune a este processo. Aqui está o problema que a Declaração de Princípios deixou de lado. Mais importante do que repetir obviedades sobre o jornalismo, o documento deveria ter abordado formas de recuperar o jornalismo neste processo maquiavélico por meio do qual as empresas e os políticos transformaram a informação de bem público em arma privada.
Os dilemas morais e a crise de valores do jornalismo contemporâneo não são tanto problemas da atividade per se, mas a consequência do fato dela ter sido incorporada como peça obrigatória no jogo de poder, o que gerou um delicado problema moral para a imprensa. Ela precisa ser independente para poder ter uma credibilidade que a capacita a atrair publicidade paga que financia o negócio da comunicação.
O anunciante precisa da credibilidade de um jornal para que o público acredite na isenção da propaganda e consuma o que foi anunciado. Só que esta credibilidade é ameaçada cada vez mais pela participação compulsória dos veículos de comunicação no jogo de poder. É cada vez menor o espaço para contorcionismos de marketing na questão da credibilidade da imprensa. É aí que o documento da Globo falha por omissão, porque deixa de dizer aos leitores aquilo que eles esperariam de um serviço que se proclama de utilidade pública.