Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O mercado de mídia e a comunicação

A principal conseqüência da convocação da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) talvez seja o sem número de debates – estruturalmente ligados à sua realização ou paralelos a ela – que pipocam por todo o país. Essa é uma posição que tenho reiterado numerosas vezes.


Considerando que um dos formidáveis poderes da grande mídia ainda é exatamente sua capacidade de construir a agenda pública – e que a realização da Confecom é um tema totalmente ausente dela –, a própria capilaridade geográfica e social do debate é, em si mesma, um fato a ser estudado e compreendido.


Tenho tido a oportunidade de participar de alguns desses debates e, neles, certos temas sempre aparecem: o que é democratização da comunicação?; o que significa controle social da mídia?; por que não se afirma no Brasil uma mídia alternativa?; a internet democratiza a comunicação?; os jornais impressos vão desaparecer?


‘Mal estar’ contemporâneo


A ousada e inédita atitude do governo Barack Obama de tratar publicamente os veículos ligados à rede Fox de televisão como ‘partido político de oposição’ é apenas mais um capítulo de certo ‘mal estar’ contemporâneo generalizado que está cada vez mais difícil de esconder.


Até mesmo a grande mídia está sendo obrigada a reconhecer publicamente que, independente de sua vontade, existe hoje um debate universal sobre as transformações por que ela passa em decorrência da revolução digital e sobre seu papel nas democracias. E, de uma forma ou de outra, os temas recorrentes nos debates provocados pela convocação da Confecom são os mesmos que se discutem em toda parte.


Comunicação vs. mídia


Uma diferença que me parece fundamental – e lembrada pelo jornalista e professor Bernardo Kucinski em debate recente, em São Paulo – é aquela existente entre democratização da mídia e democratização da comunicação.


Em artigo recente neste Observatório (‘Como democratizar as comunicações‘) chamei a atenção para o fato de que ‘democratizar as comunicações’ tem sido uma espécie de bandeira a orientar boa parte dos segmentos organizados da sociedade civil comprometidos com o avanço nessa área. Todavia, essa bandeira esconde uma falácia: pressupõe que a grande mídia, privada e comercial, seria passível de ser democratizada. Em termos da teoria liberal da liberdade de imprensa, isso significaria a mídia trazer para dentro de si mesma ‘o mercado livre de idéias’ (the market place of ideas) representativo do conjunto da sociedade – isto é, plural e diverso.


Argumentei que essa bandeira encontra dificuldades incontornáveis identificadas, sobretudo, com relação aos mitos da imparcialidade e da objetividade jornalística e da independência dos conglomerados de mídia – e também se mostrou inviável em sociedades como a Inglaterra, onde existe uma tradição historicamente consolidada de imprensa partidária.


‘Democratizar a mídia’, portanto, seria viável apenas através de políticas públicas que garantam a concorrência das empresas de mídia (a não-oligopolização) no mercado de idéias. É exatamente essa a idéia do constituinte quando incluiu no Artigo 223 da Constituição de 1988 o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal de radiodifusão como critério a ser observado para as outorgas e renovações das concessões desse serviço público.


Essa é também uma das idéias orientadoras da Lei de Serviços Audiovisuais recentemente aprovada na Argentina, que reserva um terço do mercado de mídia audiovisual para cada um dos três setores representativos do conjunto da sociedade: o privado comercial, o estatal e o de entidades privadas não-comerciais (povos originários, sindicatos, associações, fundações, universidades).


Desta forma, democratizar a mídia, na verdade, significa democratizar o mercado das empresas de mídia, garantindo a não-oligopolização e, principalmente, a representação plural e diversa dos diferentes setores da sociedade.


Já a democratização da comunicação é um processo no qual estamos avançando a passos largos por intermédio das potencialidades oferecidas pela internet. Aqui a bandeira principal é a inclusão digital por meio da oferta de computadores a preços acessíveis a todos os segmentos da população e a universalização da banda larga, possibilitando o acesso universal ao espaço interativo da internet.


Direito à comunicação


Democratizar o mercado de mídia e democratizar a comunicação são, na verdade, aspectos complementares da conquista do direito à comunicação pela cidadania.


Tenho reiterado que conquistar o direito à comunicação significa garantir a circulação da diversidade e da pluralidade de idéias existentes na sociedade, isto é, a universalidade da liberdade de expressão individual. Essa garantia tem que ser buscada tanto ‘externamente’ – através da regulação do mercado (sem propriedade cruzada e sem oligopólios; priorizando a complementaridade dos sistemas público, privado e estatal) – quanto ‘internamente’ à mídia – cobrando o cumprimento dos Manuais de Redação que prometem (mas não praticam) a imparcialidade e a objetividade jornalística. E tem que ser buscada também no acesso universal à internet, explorando suas imensas possibilidades de superação da unidirecionalidade da mídia tradicional pela interatividade da comunicação dialógica.


 

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009)