A jornalista e editora do caderno de Opinião do Correio Braziliense, Dad Squarisi oferece, no artigo “O jeito de dar um jeito” (09/04/2015), uma contribuição importante para compreender o mito da concórdia brasileira e seus estragos. De forma categórica, a articulista vai à raiz desta espinhosa questão: “Sim ou não? Nem uma coisa nem outra. Não gostamos de polarização nem de radicalizações. Preferimos o vamos ver. Ou o depende. Nossa natureza combina com a coluna do meio. Já inventamos até um verbo pra traduzir o casuísmo tupiniquim. É flexibilizar. Quer palavra mais chiclete? Afinal, pensamos, as coisas não precisam ser tão rigorosas.”
Após explicar como o ufanismo brasileiro privilegia o jeitinho como atitude dissolvente, afastando-nos das posições cabíveis a serem assumidas, Squarisi enumera como se fere a ética por conta da adesão desmedida deste tipo de espírito conciliador aos extremos que, majoritariamente, conduz o modus operandi nacional: “Jeitinho combina com improvisação, que rima com procrastinação. Sorri para a corrupção, abre as portas para o desperdício e faz a festa com o dinheiro público. Opõe-se a planejamento, a seriedade, a pesquisa de causas e à busca de soluções efetivas. Em bom português: empurra com a barriga. Bater ponto final é coisa pra francês, alemão ou americano. Com eles é pão, pão, queijo, queijo. Com o brasileiro, a coisa muda. Aqui há sempre um jeito de dar um jeito.”
Com argumentos bem arrolados, a jornalista chama a atenção para o encobrimento de uma questão essencial: existir é radicalizar. Radicalização que será posteriormente negada, num processo indefinido. Posição é estar e pretender. Necessariamente uma escolha e uma radicalização. Justificamos nosso abandono ao ecletismo como antídoto ao fanatismo, já que abominamos soluções radicais. Louvável intenção, se supusermos que soluções possam ser não-radicais. Jeitosamente buscamos a conciliação, esquecendo e dissolvendo oposições. Associado ao nosso “deixa como está para ver como é que fica”, o jeitinho nos tem conduzido a um vazio existencial dos mais estéreis. À custa de sempre dissolvermos oposições, acabamos sem qualquer posição, vítimas do que Dad Squarisi muito bem identificou: o senso impensado. Esta indiferenciação existencial na qual nos encontramos talvez explique o tipo de vítimas dóceis que nos habituamos a ser dos colonizadores, dos senhores de engenho, dos coronéis, das potências estrangeiras, dos politiqueiros e dos regimes ditatoriais.
É melhor ficar em cima do muro
A respeito, a jornalista do Correio Braziliense ilustra com variados exemplos:
“Dar um jeito virou instituição. Tão brasileira quanto a feijoada. Tão antiga quanto Pedro Álvares Cabral. Tão poderosa quanto Deus e o diabo mancomunados. Com ela até as leis físicas balançam. Quem não se lembra da bravata do presidente Figueiredo? Contrariado, o general de plantão ameaçou revogar nada menos que a lei da gravidade.” O conjunto argumentativo da jornalista leva-nos a compreender a “jeitosidade” como a inábil conciliação de uma teoria grandiloquente com uma realidade simplesmente esquecida. Esse estranho fenômeno será chamado pelo crítico Roberto Schwarz, em Ao vencedor as batatas (1977), de “as ideias fora do lugar”. De maneira incoerente, o Brasil, via “política do favor”, tenta conciliar parâmetros comportamentais bem díspares: de um lado, “a autonomia da pessoa, a universalidade da lei, a cultura desinteressada, a remuneração objetiva, a ética do trabalho etc.”; do outro, “a dependência da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada, remuneração e serviços pessoais”. Resultados desta prática cambaleante, adverte Schwarz: “Atribui-se independência à dependência, utilidade ao capricho, universalidade às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao privilégio etc.” Nesta alienação, encontram-se as origens da razão ornamental, da teorização barroca e sem compromisso com o real – exceto quando se trata de legitimar o vigente.
No país do jeitinho, do homem cordial, do carnaval eterno, eis a expressão máxima de nosso pretenso espírito eclético e conciliador: o fanatismo do mesmo. Diante de tamanha impostura, divergir torna-se crime; discordar, subversão; perguntar já é um ato de desobediência. O jeitinho, portanto, representa a falta de jeito e o excesso de força. Nele emerge sob a forma de intolerância, sectarismo, partidarismo estéril, repressão, censura – um campo fértil para a atuação da autoridade irracional e para os regimes que dela façam uso.
A respeito do que vamos sugerir para o debate do referido tema, pode ser um argumento avoado a princípio, mas creio que não: chamaria o jeitinho brasileiro de “pilatosmania”. Refiro-me à decisão adotada por Pôncio Pilatos, prefeito da província romana da Judeia, no caso que condenou Jesus à morte na cruz, apesar de não ter nele encontrado nenhuma culpa: “Que mal fez ele?, perguntou Pilatos. Porém cada vez clamavam mais: Seja crucificado! Vendo Pilatos que nada conseguia, antes, pelo contrário, aumentava o tumulto, mandando vir água, lavou as mãos perante o povo, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo; fique o caso convosco!” (Mt. 27.23-24). Nesse contexto, “lavar as mãos” pode muito bem simbolizar uma atitude típica da cultura do jeitinho. É melhor ficar em cima do muro do que tomar partido, reza a cartilha da acomodação conveniente. Este estacionamento mental e cordial não nos impulsiona para um momento que pode e precisa ser melhor. O jeitinho é, portanto, responsável direto pela rudimentariedade de nossas posições que, perigosamente, estão atreladas ao culto da “mesmidade”.
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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários