Este escritor confessa que até o ano 2000 leu tudo o que pôde sobre os sem-terra, visitou acampamentos e conversou com assentados, quase todos desempregados urbanos, para escrever Os Guerreiros do Campo. Mas, depois disso, limitou-se ao que lhe informa a mídia.
No lançamento do romance, no Sesc de São Carlos (SP), o autor faria mesa-redonda com José Rainha, conhecido líder dos sem-terra, que enviou um fax, no qual declarava ter feito a leitura, mas estava impedido de comparecer: havia uma ordem de prisão contra ele, e policiais disfarçados rondavam o Sesc. (Os antigos romanos usavam o plural de impedimentum, impedimenta, para designar os bens de família, incluindo filhos e escravos, que não podiam marchar com o pater. O étimo de impedimento é pes, pé).
Os policiais que procuravam José Rainha eram estranhos no ninho aquela noite. Se usassem sapato preto e meias-brancas não se tornariam tão fáceis de serem identificados.
Devem ter aprendido algo com a intervenção do fazendeiro Paulo Botelho, que, nos debates realizados depois do lançamento, se pôs a favor do romance e, de certa forma, do MST, ao defender que o Brasil tem terra para todos e a reforma agrária deve ser feita com urgência. A urgência já dura séculos.
Problema mal formulado
Pois, na segunda-feira (14/1), cerca de 1200 militantes do MST ocuparam a Fazenda Coqueiros, no município de Coqueiros do Sul (RS). Foi a nona vez que o fizeram desde 2004.
Mas eles ocuparam ou invadiram? O MST prefere o verbo ocupar. O MST tem até mesmo razões etimológicas. O que militantes do movimento, enganados pelo ativista francês José Bové, invadiram foi um experimento científico com soja transgênica, em Não-me-Toque (RS), ato insensato e condenável, que este autor reprovou num artigo para a revista Época, pois a experiência tinha supervisão das autoridades competentes [ver, neste Observatório, ‘Bové, um herege científico‘].
Invadir vem acompanhado de destruir. Ocupar vem acompanhado de plantar.
A Fazenda Coqueiros fica nas proximidades de Encruzilhada Natalino, berço do MST, e é de propriedade da família Guerra, dona de 7000 hectares. Segundo o MST, a ocupação é para pressionar o Incra a cumprir parte dos acordos de 2007, que puseram fim às marchas do MST.
O MST quer uma agricultura do tempo do querosene Jacaré, vendido pela Esso, que proclamava, no rádio sobretudo, iluminar as residências nos sertões do Brasil.
Naquele Brasil, a agricultura de subsistência evitava a maciça migração para os centros urbanos e era uma das principais responsáveis pela paz social, hoje perdida nas grandes cidades, a ponto de a segurança, e não a educação ou a cultura, ser bandeira proeminente nas eleições e item de altas despesas nos orçamentos públicos e privados – de que são exemplos as novas propostas do ministro Tarso Genro, infelizmente mal acolhidas pela mídia por razões de política partidária, a pior de todas, e as providências que cada um deve tomar com o seu próprio patrimônio, hoje à disposição da sanha de assaltantes, invasores de residências, ladrões de carros, de celulares, de notebooks, de relógios etc. E freqüentemente a mídia ainda absolve esse tipo de crime, condenando indefesos cidadãos que tiveram o topete de ter bens que compraram com o seu trabalho. Isso é que formular mal o problema, hein! A vítima passa ser previamente culpada de ter mostrado o que tem, como se devesse esconder, saindo às ruas quase pelada para não ser roubada.
Precedente perigoso
A mídia marca presença nos locais de conflito e proclama os erros do MST com espantosa agilidade, mas esconde os assentamentos que deram certo em várias regiões brasileiras, onde os assentados se integraram às comunidades locais.
E nem sempre os conflitos são examinados com isenção. Aliás, às vezes nem são noticiados. No final de 2007, no assentamento de Bela Vista, em Araraquara (SP), os atuais ocupantes foram atacados por ex-assentados que tinham arrendado para o cultivo da cana-de-açúcar a área recebida do Incra. Mas a mídia ficou na conhecida e tediosa pauta das Boas Festas, a mesma de todos os fins de ano.
E, como lembrou Gabriel de Salles, na Gazeta Mercantil (12-13/1), não foi para vender caldo na beira da estrada e produzir rapadura que eles tinham plantado cana-de-açúcar. Sem corrompidos e sem corruptores, não teria havido o desvirtuamento da produção, pois a lei é clara quando determina que os assentamentos se destinam à agricultura familiar.
O precedente de Araraquara é perigoso. Para produzir combustível, foram destruídas as pequenas propriedades. E agora, de novo, o combustível dá início à destruição dos assentamentos?
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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são Os Segredos do Baú (Peirópolis) é A Língua Nossa de Cada Dia (Novo Século); www.deonisio.com.br