O jornalismo baseado na mentalidade-índice-de-audiência, expressão do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1997), busca a notícia-novidade, instrumentaliza-se pela velocidade (‘furo’), produz banalização e uniformização e é executado em grande parte dos meios de comunicação do Brasil e do mundo.
Maio já é visto pela imprensa como período pré-eleitoral e, por conta disso, os espaços políticos de jornais, revistas, sites, TVs e rádios tomaram a forma duma arena de corrida de cavalos, onde o mais importante é saber os nomes dos animais, dos jóqueis e de seus patrocinadores, da mesma forma que interessa exibir semelhanças e animosidades entre cada um.
Pouquíssimo se fala em plataforma de governo. O eleitor aparece, sim, mas como ponto percentual de pesquisa. É a coisificação do ser humano, um dos efeitos da ‘verticalidade da comunicação de massa’, ou seja, do alto grau de unilateralidade produzido pela inserção da tecnologia no processo comunicacional, conforme Luiz Beltrão e Newton Quirino (1986).
Grande parcela do conteúdo dos espaços políticos também se deve, mesmo neste período, aos escândalos ou grandes exemplos de cidadania relacionados à cúpula do Planalto, do Paiaguás (sede do governo de Mato Grosso), do Alencastro (sede da Prefeitura de Cuiabá) e por aí vai.
Só com autorização
São lançamentos de programas com destaque para as autoridades presentes (e não pelo que os projetos representem no ambiente social), trocas de farpas entre pré-candidatos de partidos diferentes, disputas internas para saber quem levará a melhor, declarações de personalidades sobre o valor do salário mínimo (e não a discussão ampla acerca de como mudar a política trabalhista, de distribuição de renda, de geração de emprego, de capacitação científica e tecnológica), indicações e remanejamentos de cargos públicos, relacionamentos entre bancadas de vereadores, de deputados federais, senadores, deputados estaduais com o Poder Executivo municipais, estaduais e federal.
Os meios de comunicação definem o espaço a ser nomeado político como uma área reservada, restrita, na qual coabitam somente os que detêm requisitos. Não pode ser qualquer um. Ao contrario. Requisitos como poder, estar no poder, ocupar um cargo que lhe garanta visibilidade pelo simples fato de ocupá-lo.
É o exercício da preferência aos interesses particulares. O exercício da produção do glamourismo, da mitificação, do culto à imagem: os bate-bocas entre políticos são trabalhados simbolicamente como embates entre titãs; articulações e artimanhas pela conquista do poder, atitudes dos integrantes desta casta têm difusão assemelhada a grandes feitos, serviços hercúleos, de sabedoria milenar.
Quem tenta penetrar sem autorização neste universo ou é logo agregado – e daí já passa a fazer parte dele, portanto, deixando de ser penetra – ou é titulado como ‘entrão’, e, em razão disso, continua do lado de fora.
Sociedade civil de fora
A delimitação desse espaço, chamado de político, por conseqüência, isola seus membros dos demais, do todo, do resto, e promove, assim, divisões sociais, distanciamento social. E aí falo de separações como entre político filiado e não-filiado, integrante de executiva de partido e só filiado, eleito/elegido e eleitor, prefeito e militante de associação de bairro, dirigente e povo/popular.
Esse isolamento abastecido pela ação diária da mídia supervaloriza ‘os de dentro’ e mantém importância demagógica sobre ‘os de fora’ (‘a força do voto do povo’, ‘a opinião pública’, ‘a consciência do eleitor’, ‘o poder das massas’, ‘a rebeldia dos estudantes’). Uma fórmula de acomodação, amortecimento. Cada notícia sob o formato ‘divisor/elitista/privilegiador’ o solidifica. Há assimilação, entronização.
Isso gera redução de mundo, pois os leitores/eleitores/cidadãos, tontos na condição de esperadores/espectadores/seres estáticos, se alimentam do próprio processo que os faz assim, tão distantes dos patamares de decisão. É um círculo entorpecedor.
Redução porque pouco se fala sobre os grêmios estudantis que discutem projetos com pré-candidatos, movimentos comunitários que se reúnem ordinariamente para tratar dos problemas da região e buscar soluções práticas sem ter de recorrer ao poder público, grupos de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros ocupados em se agregar a outros setores para promover projetos de lei de iniciativa popular.
Assim como também pouco se fala sobre as políticas de educação, saúde e saneamento básico, cultura, agricultura familiar, a relação do poder oficial com os poderes não-oficiais, as formas de mediação que a sociedade civil tem constituído para deslegitimar o controle do Estado…
Desejo de milhões
E o mesmo processo pode ser verificado no colunismo social. Quais são suas características básicas? Mostrar pessoas diferentes da maioria, geralmente por terem mais dinheiro, ocuparem postos mais afamados ou fazerem parte de famílias tradicionais, em momentos de festança ou em eventos ditos cultos. E qual é o significado do colunismo? Oferecer às pessoas elementos das vidas alheias, das vidas que não são suas, que não têm a ver com as suas, que estão distantes das suas.
O colunismo social tem como característica individualizar o tema, pessoalizar a discussão, valorizar o poder do estrelismo, temperar na condição de celebridade, trabalhar explicitamente o sentimento de superioridade, de elevação, de diferenciação de um para o outro, de quem ali está sendo retratado para quem está absorvendo o retrato, o relato. E, enfim, produzir admiração, seja este sentir algo mais próximo da inveja, da raiva, do comentário sórdido, do apego à exuberância.
Portanto, o colunismo trabalha sob a ótica da divisão social, do complexo de piscinas com águas realmente transparentes para os que nelas podem entrar, ou seja, os que possuem os requisitos. Nesse parque aquático o que há? Desfile. E de quem? Dos selecionados. E do que se fala? De utilidades que são fúteis à maioria das pessoas.
Enfim, de um universo fantástico, desejado por milhões, inalcançável, algo possível somente nas confidências, nas lembranças dos sonhos, nas fofocas cotidianas, nos espasmos coletivos, nos delírios momentâneos, na plena consciência da distância entre ‘o que eu vivo’ e o que ‘eles vivem’/ ‘o que eu sou’ e ‘o que eles são’/ ‘o que eu represento para o mundo’ e ‘o que eles representam para o mundo’.
Maior e mais complexo
E como esse empreendimento ideológico se sustenta? A partir dos olhos vidrados, dos aplausos, dos dentes cerrados dos esperadores/admiradores. Do reviver continuo da sistemática gratificação-prejuízo (ilusão-realidade).
Quer dizer, tanto o colunismo social quanto o jornalismo político produzem distanciamento social e redução de mundo. Entretanto, enquanto o primeiro funciona sob uma relação explícita com o não-incluso – a de que ele é apenas um espectador –, o segundo oferece sensações de interação, diversidade, objetividade, partilha do poder de escolha/abordagem/apresentação/decisão.
O jornalismo político é aquele que por trás do espetáculo da divisão (os vistos e os que vêem) projeta o rótulo do trabalho em prol do interesse público, do serviço global que cobre ao máximo o que há de mais importante na cidade, no estado, no país, no mundo. Porém, trata-se de um subproduto do ‘jornalismo-índice-de-audiência’, respaldado comercialmente por quatro séculos de história.
Por isso é que sobre o Oriente Médio se vêem principalmente guerras; a respeito da África, fome e Aids; acerca de Cuba, Fidel Castro; sobre os Estados Unidos, Bush e Kerry; em Mato Grosso, soja; Venezuela, Chávez… O mundo é bem maior e mais complexo do que isso. Pretendo me debruçar sobre a produção/manutenção de divisão social pelo jornalismo-índice-de-audiência por acreditar que isto seja efetuado por ‘ele’ em todas as áreas que cobre, e não só na política.
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Jornalista em Cuiabá e professor de Teoria da Comunicação I da Faculdade Afirmativo/Cuiabá