Uma borboleta balançou as asas num campo de futebol. O nome pelo qual é conhecida é seu apelido: Grafite. Outra borboleta fez o mesmo no outro lado do mundo. O nome pelo qual é conhecida é seu apelido: Lula.
As duas tocavam no mesmo problema, o racismo. As duas borboletas são brasileiras. Uma governa o Brasil como presidente da República. Outra joga futebol pelo São Paulo.
O presidente pediu perdão, em nome do Brasil, pelos quatro séculos em que o país praticou e foi beneficiário da escravidão racista. O autor do pedido já incorporou o apelido ao nome: Luiz Inácio Lula da Silva.
Grafite continua privado até de seu próprio nome, ocorrência usual em jogadores de futebol, a menos que se chamem, como no caso emblemático do maior de todos eles em todos os tempos, Pelé. Neste caso, todos são informados que é codinome de Edson Arantes do Nascimento e tem a mesma cidadania negada a Grafite. Mas na Argentina não é apenas Maradona que é conhecido como Diego Armando Maradona. Será que por serem quase todos brancos os seus jogadores, fica mais fácil declinar seus nomes completos?
Ironia e coincidência
O jogador argentino incorreu em erro terrivelmente reincidente nos campos de futebol: as ofensas disparadas por jogadores brancos contra jogadores negros, até então sempre impunes, creditadas ao calor da hora, a conflitos próprios do jogo.
Não é só nos campos de futebol que o racismo aparece. Ele está embutido na vida nacional sem que percebamos muitas vezes onde e como, pois jaz no inconsciente há séculos. E por conseguinte também a imprensa o pratica sem querer, de que é mostra o modo como Veja noticiou o fato: ‘Indiciado o jogador argentino Leandro Desábato, por injúria qualificada por preconceito racial. Durante um jogo contra o São Paulo, pela Taça Libertadores da América, o zagueiro do Quilmes, em confronto com o atacante adversário Grafite, chamou-o ‘negro’, epíteto seguido de palavrões e expressões ofensivas’.
Quer dizer, o branco tem nome completo. Do negro, basta o apelido. Para ser coerente, Veja deveria ter informado que Grafite é apelido de Edinaldo Batista Libânio. Deve ser este o nome presente nos textos jurídicos da denúncia. Por que a imprensa o omite, então? Não será pela mesma razão que omitiu os palavrões pronunciados pelo ofensor! Afinal, Edinaldo Batista Libânio, o Grafite, foi chamado em campo de ‘negro de merda’, assim como outros são chamados de crioulo, tição, corno, baiano, paraíba, pau-de-arara, cabeça chata, baiano, veado etc.
Foi o contexto das ofensas que levou alguns comentaristas esportivos a vacilarem na condenação do gesto do argentino. Afinal, sempre se fez isso, o que dá à ofensa a capa falsa de normalidade!
Por uma daquelas ironias muito caras às coincidências, ambos disputavam partida pela Libertadores da América, continente que já se libertou de muitas coisas, mas do racismo ainda não. O nome da taça foi inspirado nas lutas que célebres personalidades, como Simón Bolívar e San Martin, travaram para libertar esta América, de que o Brasil faz parte assim meio de lado, principalmente por uma questão lingüística: é a única nação a falar e a escrever em português.
O torcedor e as metáforas
Sempre as palavras! Nas guerras como na paz! A paz e as guerras são feitas sobretudo com palavras. A palavra arma a boca para declarar a guerra. Ou emite a ordem escrita que faz dos braços dos abraços os braços armados para aniquilar o outro. É igualmente a palavra que sai da boca, às vezes com muito atraso, para pedir desculpas e solicitar o perdão. É também a palavra que, lançada ao papel, engendra o tratado de paz, o armistício. Mas não podemos ouvir apenas o que foi pronunciado, nem ler apenas o que foi escrito. Há que iluminar os escuros restantes com a exegese, com a interpretação.
Assim, talvez Edinaldo Batista Libânio, o Grafite, não saiba, mas sua iniciativa de levar à cadeia o colega argentino Leandro Desábato, a quem denunciou por racismo, está amparada também num célebre documento pontifício intitulado Memória e Reconciliação: a Igreja e as Culpas do Passado, lançado em 2000.
O racismo foi um dos sete pecados cometidos pela Igreja pelos quais o Santo Padre pediu perdão, ao lado dos métodos da Inquisição (dos métodos apenas, pois a Inquisição continua em vigor e recentemente puniu Leonardo Boff), os abusos nas Cruzadas, a omissão diante das perseguições e a mortes dos judeus, ‘o povo da primeira Aliança’. No documento, também o desrespeito a outras culturas e religiões na evangelização e os preconceitos contra mulheres foram objeto de arrependimento.
Mas os libertadores estão demorando a chegar ao futebol e à linguagem esportiva. O problema está em situar o contexto em que os exageros são perpetrados. Negrão, negão, crioulo e quetais podem não ser ofensivos. Depende de quem os pronuncia, a quem são dirigidos, como, quando, por quê etc. Isto é, do contexto. Certamente o torcedor que grita ‘mata, quebra, esfola’ está se servindo de metáforas. Mas Edinaldo Batista Libânio, o Grafite, sabia que a intenção de Leandro Desábato era outra. E invocou a lei para protegê-lo. Deu uma tremenda lição do uso da lei numa sociedade democrática: todos são iguais perante a lei!
Pesquisa de opinião
O racismo no futebol argentino tem outros agravantes. Julio Grondona, presidente da AFA (equivalente argentina da brasileira CBF), há 26 anos no poder, e vice-presidente da FIFA, declarou ano passado que evitava escalar árbitros judeus porque ‘o mundo do futebol é difícil, de muito trabalho, e os judeus não gostam de trabalhar’. Pediu desculpas depois que diversas organizações da comunidade judaica da Argentina protestaram contra ele na Justiça.
Nos campos de futebol argentinos, ofensas aos judeus não são tão raras. Como informa Ariel Palacios, correspondente do Estado de S.Paulo em Buenos Aires, ‘a torcida do time Defensores de Belgrano entoa sistematicamente cânticos anti-semitas nas arquibancadas, além de jogar sabonetes no campo, em alusão aos corpos dos judeus incinerados nos campos de concentração, cuja gordura era transformada em sabão’.
Vivem hoje na Argentina cerca de 600 mil pessoas de origem judaica. Nos anos 30 do século passado, nazistas argentinos chegaram a ter 60 mil simpatizantes em seu partido. Ainda segundo Ariel Palacios, atualmente há dois partidos neonazistas na Argentina. O líder de um deles é chamado de ‘führer’ pelos seguidores, que usam a saudação nazista entre eles.
Em Buenos Aires, logo depois do incidente no Brasil, o jornal econômico Infobae fez pesquisa de opinião: 68,72% admitiram que os argentinos são racistas; 31,28% disseram que não.