A palavra chave dos mágicos é Abracadabra, a senha usada pelo Ali-Babá é Abre-te Sésamo e para que as pessoas fiquem imóveis, como se estivessem congeladas, é Mandrake. Os velhos exorcistas consagraram a expressão infalível: Vade retro, Satanás! Mas, para que os bem fornidos meios de comunicação do país entrem em polvorosa, tenham urticárias e passem a delirar em transe quase mágico basta apenas que escutem três palavrinhas: Controle social da mídia! E já será mais que suficiente para que o salseiro se instale de forma imediata e generalizada.
Então fica combinado: a sociedade não pode controlar a mídia, mas a mídia pode ser controlada por apenas seis famílias. E os direitos das famílias nem precisam ser defendidos por estas, basta apenas escalar dois ou três jornalistas do jornal ou da revista para demonizar a expressão e, em conseqüência, o prenúncio do debate. Nas emissoras de televisão, é suficiente que jornalistas do alto de suas bancadas – para que não caia no esquecimento a cínica expressão do Boris Casoy – assestem suas baterias contra quem se atreva a questionar o direito semidivino de apenas seis famílias controlarem integralmente os mais assistidos, lidos, ouvidos e acessados veículos de comunicação no Brasil.
O que poderia ser um saudável debate sobre a qualidade do jornalismo que desfrutamos vem se transformado em cinismo explícito, em tortuosas argumentações para mascarar o controle social da mídia pela censura mais hedionda, superior à praticada em regimes totalitaristas de direita e de esquerda. Podem não ter ideais, mas conhecem muito bem o poder aglutinador que os ativos financeiros têm sobre a tropa que, de elite, é sempre bem sucedida no intento de confundir liberdade de expressão com liberdade de pressão, pura e simples.
Letra da lei
Não precisamos ir muito longe. Como as duas principais revistas semanais de informação do país retrataram o fórum ‘Democracia e liberdade de expressão’, promovido em 1/3/2010 pelo Instituto Millenium, em São Paulo?
A revista Veja (edição 2155, de 10/3/2010) escolheu um ultimato para titular a matéria: ‘Liberdade não se negocia’. E o incauto leitor da semanal poderia comprar gato por lebre se ficasse apenas na manchete: afinal, cara pálida, quem está mesmo querendo negociar a liberdade? O texto diz a que veio logo em sua abertura:
‘Desde que o PT chegou ao poder, os radicais do partido arquitetam um plano atrás do outro para tentar controlar jornalistas e inviabilizar comercialmente as empresas de comunicação.’
Para um convescote cuidadosamente planejado para discutir democracia e liberdade de expressão, esta primeira frase denota seu cunho partidário acima de qualquer suspeita e revela um reducionismo atroz. É como se toda a experiência do PT no governo se ativesse a planos para ‘controlar jornalistas e inviabilizar comercialmente as empresas de comunicação’, o que é, decerto, rematada falácia. Qual jornalista no Brasil foi controlado de 2003 aos dias atuais? Por acaso alguma torneira – do BNDES ou do Banco do Brasil – foi fechada sempre que algum megaempresário do ramo da comunicação buscou renegociar (rolar) suas dívidas ou veio em busca de capital novo? Não seria fechando torneiras de instituições financeiras federais que se conseguiria a média prazo inviabilizar essas empresas? Isso aconteceu? Não se deu exatamente o contrário? Afinal não foram mais que 3.000 jornais e rádios de cidades médias e pequenas que passaram a ser convidadas àquele banquete oficial onde o governo distribui sua dotação orçamentária destinada à comunicação?
O texto de Veja é de quem deseja única e exclusivamente interditar o debate sobre liberdade de expressão para, mantendo as coisas como estão, a população possa se servir tão somente do prato feito, aquele prato que não respeita a diversidade de pensamento, que não admite outras visões da vida nem do mundo e muito menos da sociedade que lutamos por construir. Logo a seguir vemos irromper o pensamento sempre beligerante e autoritário dos que demonstram pouco ou nenhum apreço pela liberdade de expressão. Eis o que escreveu Veja:
‘Depois, eles passaram a defender com ainda maior despudor o `controle social dos meios de comunicação´ – que é apenas um rótulo menos chocante para a implantação da censura oficial no Brasil.’
Não seria útil que alguém que pretenda escrever texto sobre liberdade de expressão no Brasil considerasse fazer uma rápida leitura do disposto nos artigos 220 a 224 da nossa Constituição Federal? Não está escrito que é da competência do Poder Executivo ‘outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens’? Então, deveríamos imaginar que este mandato concedido pelo povo brasileiro através de voto popular a seus representantes legítimos poderia ser tratado como mera formalidade burocrática, como carimbo de cartório conferindo autenticidade de assinatura?
Mercado onipresente
Para desempenhar sua missão constitucional, o Estado necessita prover o debate arejado e em escala nacional de forma a que a população possa ser ouvida e não apenas os proprietários dos meios de comunicação. É fato que muitos podem falar e poucos podem ser ouvidos. É nessa ótica encampada entusiasticamente por Veja que vem se demonizando no país qualquer iniciativa que busque moralizar minimamente a mídia brasileira.
Propor regulamentação ou discorrer sobre a necessidade de autorregulamentação do exercício jornalístico por parte das empresas de comunicação é sempre rotulado como censura. E assim, ironicamente, querendo defender o indefensável, todo o debate passa a ser sumariamente censurado. Serve-se a censura em altas doses, uma censura acobertada pelo extenso manto em que se aninha o bem a ser defendido: a liberdade de expressão. Com espadas em punho logo na abertura da matéria não seria demais esperar algumas pérolas de cinismo, como essas:
‘Na semana passada, pela primeira vez, ouviram-se vozes organizadas contrárias a essa marcha da insensatez. Durante um encontro feito pelo Instituto Millenium, em São Paulo, jornalistas, empresários, intelectuais e políticos avaliaram os riscos reais que o radicalismo oferece à democracia no Brasil, opondo-se à pregação totalitária…’
Chega a ser risível. Como assim ‘pela primeira vez, ouviram-se vozes organizadas contrárias’? A amnésia parece ter tomado de assalto a redação de Veja. Será que ninguém se deu ao trabalho de pesquisar jornais e revistas que ‘cobriram’ e ‘buscaram encobrir’ a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom)? Poucos eventos nos últimos anos receberam tanto noticiário negativo como a Confecom. E quem assinava tais ‘matérias’ ou forneciam as indispensáveis ‘aspas’ (frases de efeito muitas vezes duvidoso) não seriam os mesmos personagens que pontificaram ao longo do evento patrocinado pelo Insituto Millenium?
Uma vez mais a inversão da história: os tais que ‘avaliaram os riscos reais que o radicalismo oferece à democracia no Brasil’ foram os mais radicais e fizeram a mais dura pregação contra a liberdade de expressão do Brasil. E para isso contaram com os meios mais aptos a potencializar sua própria ideologia: a do Deus-Mercado acima de tudo e de todos, em baixo, em cima e no meio. É a velha história de que os radicais são os outros, os censores são os outros – ou, como dizia Jean-Paul Sartre, o inferno são os outros.
Termos de uso
A revista Época (edição nº 616, de 6/3/2010) também dedicou página inteira para falar do evento paulista. Menos truculenta que Veja, a semanal das Organizações Globo optou pelo medo em sua manchete: ‘O risco para nossa liberdade’. Tentou contextualizar as tensas relações entre governos e mídia na América do Sul. Relatou a situação na Venezuela, na Argentina e no Equador para perguntar como quem não quer nada:
‘Qual é o risco de que prosperem por aqui as tentativas de amordaçar a mídia, vestidas sob a roupagem do `controle social´?’
E optou por destacar opiniões do controvertido geógrafo Demétrio Magnoli:
‘O PT só existe em virtude da democracia, mas mantém relações ambivalentes com ela… Celebra a Venezuela de Chávez, aplaude o regime castrista e soltou nota em apoio ao fechamento da RCTV.’
É um raciocínio tortuoso e curioso. Será mesmo que é só o PT que existe em virtude da democracia no Brasil? Esquece o geógrafo que o mesmo governo que celebra a Venezuela e aplaude Cuba é o governo que criou uma diplomacia que se põe de pé, mostra autonomia decisória e esbanja soberania na cena internacional. É o mesmo governo que levou cerca de 20 milhões de brasileiros da classe pobre para a classe média e que, mesmo com o horroroso PIB de -0,2% auferido em 2009, ano da maior crise econômica mundial desde a Depressão de 1929, ainda assim se firmou como a sexta maior economia do G20, aquele seleto grupo que reúne as 20 maiores economias do planeta.
De novo a visão de que o inferno são os outros. Por que será tão difícil compreender que concessão de radiodifusão é algo simples e que quem não cumpre com as condições acordadas pode vir a perdê-la? É como escreveu um leitor: ‘Imagina eu chegar em meu trabalho e dizer ao meu patrão que eu não vou cumprir o meu contrato de trabalho e, se ele não estiver satisfeito, que monte outra empresa e me deixe quieto no meu canto, fazendo o que eu quero…’
Palavras e expressões
Os dois textos – de Veja e de Época – parecem ter sido escritos pela mesma pessoa tal o azedume e a desfaçatez com que tratam de tema tão essencial quanto liberdade de expressão em um país de 192 milhões de habitantes – e tendo apenas meia dúzia de ilustres famílias como proprietárias de seus mais importantes conglomerados empresariais de comunicação.
Esquecem que o risco real para nossa liberdade – para fazer melhor uso da manchete de Época – são as seguidas tentativas de interditar um debate que, longe de se esgotar, está apenas se iniciando. Muito equivocado é o entendimento de que a concessão pública não obriga a publicação da pluralidade de opiniões. Ou seja, ‘se a concessão é minha… publico apenas o que quero, não tenho que dar satisfação a ninguém’.
Encontros como o do Instituto Millenium parecem ter apenas um único objetivo: evitar que se jogue luz sobre os monopólios e oligopólios da comunicação no Brasil. Ao fazer isso, a mídia corporativa confisca a liberdade de expressão da sociedade em nome, exclusivamente, da manutenção do status quo. Tão simples quanto isso.
E do jeito que as coisas caminham, o diabo que já é conhecido por palavras e expressões como Coisa-Ruim, Tinhoso, Pé-de-Bode, Cabrunco, Capa-Verde, Capeta, Capiroto, Cramulhão, Crinado, De-trás-da-porta, Demo, Dos Quintos, Encardido, Sete-Peles e Tranca-rua não demorará muito a ser referido por certa classe de jornalistas, intelectuais e empresários como… Controle Social da Mídia.
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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter