‘Não há nada tão divertido quanto a discussão de um livro que ninguém leu!’ As palavras do austríaco Karl Kraus soam oportunas. Não me recordava de ter assistido a um debate tão, digamos, pouco fundamentado, tão cheio de falsas premissas, como aquele que os meios de teledifusão alimentaram, recentemente, acerca das mudanças operadas no exame de acesso à carreira diplomática no Brasil. Desinformação? Falha na comunicação governamental? Má-fé? Interesses políticos camuflados? Possivelmente, de tudo um pouco…
Em primeiro lugar, muito se falou da abolição do requisito de se dominar o inglês, em nível de proficiência, para o exercício da profissão de diplomata. Balela! Atenhamo-nos aos dispositivos da famigerada Portaria nº 467, de 7 de dezembro de 2004, que anuncia as alterações nas regras do concurso:
‘O Ministro de Estado das Relações Exteriores, no uso das suas atribuições, (…), resolve: Art. 4º. Na terceira fase [do concurso], serão realizadas provas escritas de História do Brasil, de Geografia, de Política Internacional, de Noções de Direito e Direito Internacional, de Noções de Economia, de Inglês, e de Francês ou Espanhol. Parágrafo único. Será estabelecida nota mínima para o conjunto de provas da terceira fase.’
Como se vê, a prova de língua inglesa continua a constar do corpo de disciplinas avaliadas para o ingresso no Instituto Rio Branco, a academia diplomática brasileira. Ocorre que, daqui por diante, esse mesmo inglês deixará de ostentar caráter ‘eliminatório’. E o que isso quer dizer? Que, ao contrário do que ocorria em edições passadas do concurso, o domínio, em nível de proficiência, do idioma materno de Keats e Yeats deixa de ser um ponto de veto. No futuro, o candidato que se escudava num conhecimento extraordinário da língua inglesa (adquirido, mais das vezes, após viver longos anos em país estrangeiro), e atingia um rendimento apenas modesto nas demais disciplinas avaliadas, qualificando-se, ainda assim, para a carreira, encontrará maiores dificuldades pela frente.
As medidas defendidas por Celso Amorim definem um perfil mais equilibrado e versátil para o novo homo diplomaticus brasileiro. Ao retirar um ponto de veto do exame, a proposta do ministro de Estado franqueia o acesso a mais e novos aspirantes a diplomatas. Mas não nos equivoquemos: num concurso cuja relação de candidatos por vaga excede – tradicionalmente – uma centena, não se aprovará, sob nenhuma hipótese, um analfabeto em língua inglesa. Alguma familiaridade com o idioma estrangeiro continuará necessária. Além do que, convém rememorar, existirá nota de corte para o conjunto das provas de terceira fase.
Certamente, a natureza endogâmica do Itamaraty (burocracia em que se observa a constituição de verdadeiros ‘clãs’ parentais, ao longo da sua história) será mitigada. O concurso não deixará de ser elitista – se compreendermos, por elite, ‘o que há de melhor em uma sociedade ou em um grupo’ (Dicionário Aurélio). Em estrita conformidade com o princípio liberal da meritocracia, apenas os mais aptos, e devidamente merecedores, serão selecionados. O interessante é que, no novo formato do concurso, uma combinação mais ampla de aptidões será demandada do candidato aprovado.
Quatro sobrenomes
E para a hipótese de serem aprovados candidatos com domínio incipiente do inglês? Uma ressalva preliminar é importante: o jovem diplomata, que acaba de passar pelo concurso, não se torna, da noite para o dia, um plenipotenciário da nação. Com alguma sorte, e muita competência, este funcionário público ascenderá ao posto de embaixador só depois de uns 30 anos de serviços prestados. Não se exigirá, de um terceiro-secretário (primeiro degrau na hierarquia da carreira diplomática), uma interlocução direta com o rei da Espanha, ou com o secretário de Estado dos EUA. Tudo isso é fantasioso…
O ponto mais positivo, dentre o que foi proposto por Amorim e sua troupe, diz respeito ao papel que o Estado brasileiro deverá rogar para si. Como disse o chanceler brasileiro, em recente entrevista à Folha de S. Paulo, o Estado se incumbirá, neste processo, de fornecer todos os instrumentos necessários para o aprendizado, em alto nível, do inglês, ao candidato que dele carecer. Segundo compete a todo bom Estado liberal e democrático, o Ministério das Relações Exteriores, a despeito de toda a grita, dá um passo corajoso no sentido da inclusão, do combate às distorções e assimetrias sociais, da maior igualdade de condições para competir entre os postulantes a uma carreira que, sempre é bom reiterar, é pública.
O jornalista Elio Gaspari, a esse mister, brinca: ‘O inglês eliminatório facilita o acesso de jovens de famílias com quatro sobrenomes e apelidos bissílabos. Em compensação, mantém o andar de baixo no seu lugar’. Não poderíamos discordar do jornalista.
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Mestrando em Ciência Política pela UFMG, editor do periódico de política internacional O Debatedouro (www.odebatedouro.com.br/)