Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O olhar na era digital

O olhar do homem, neste século, seja ele de quem for, e principalmente de chefes de Estado, deve seguir um ritual de precaução para evitar transtornos na vida pública e particular.


No mundo global, dominado pela nanotecnologia (aperfeiçoamento dos objetos digitais em tamanho menor), como o telefone celular, por exemplo, perdemos a privacidade e ficamos ao sabor de toda sorte de inconveniências. Os paparazzi, as filmadoras eletrônicas e outras parafernálias espionam nossas vidas (em casa e na rua), seguem nossos passos e terminam donos do nosso destino ou conceito, ao produzir imagens comprometedoras, insinuantes, algumas sensacionalistas, mas às vezes prestam bons serviços.


Em segundos nos transformam num produto de exposição de vitrine de luxo ou produtos imprestáveis jogados no lixo.


Os presidentes dos EUA, Barack Obama e Nicolas Sarkozy, da França caíram por ingenuidade ou malícia nesse tipo de armadilha. Cometeram um erro elementar, não grave, digamos,comprometedor, ao olhar, para as costas, com olhos de cobiça, exagerada indiscrição, de Mayra Tavares, 17 anos de idade, brasileira, tendo como foco oderrière (em francês) oubottom (em inglês); para nós, do Brasil, traseiro. O presidente Lula, que não é letrado mas esperto, saiu de fininho ou virou o olhar para outros lugares. As fotos de Obama e Sarkozy correram o planeta mais rápido que a velocidade da luz. Aparecem bestificados com o que viam. Muita ingenuidade ou excesso de fantasia. Caíram no ridículo por nada. Como se explicaram em casa? Ninguém sabe. No mínimo não faltou uma desculpa. Questões domésticas de um político não interessam a não ser que interfiram na vida pública.


Fantasiados de Adão e Eva


Voltemos a Lula e Mayra. Ambos, sem dúvida, gostaram do ocorrido, por vários motivos. O presidente tem viajado muito promovendo o país, com ênfase no turismo, não precisou usar o latim na reunião do Unicef, agência das Nações Unidas cuja convenção é reger-se pelos direitos da criança, realizada em Áquila, Itália. O objetivo do encontro era discutir com 56 adolescentes de várias partes do mundo a questão do trabalho de líderes de comunidades junto a meninos carentes. Mayra, do Rio de Janeiro, é uma dessas líderes e quanto à sua presença ter conquistado status de beleza exótica, há um aspecto positivo. Representa a beleza feminina do país, apesar de não ter viajado para exibir os dotes que Deus lhe deu, pois não se tratava de concurso de miss. Aconteceu.


Ninguém negará as boas risadas da sociedade globalizada ao olhar a cara de espanto de Obama e Sarkozy, com aqueles olhos estupefatos, como quem depara com um extraterrestre – ET. O riso veio ainda não apenas pelas fotos de Jason Reed, da Reuters, mas, dos jornais. Incluam-se os sensacionalistas, que nesse dia ganharam um prato cheio temperado com escândalo. OBild, da Alemanha, fez gozação num trocadilho com o nome de Obama, que terminou num mote, para depois dizer que: ‘Pode ser o homem mais poderoso da face da terra, mas não está imune ao charme de um belo traseiro’.


OHerald perguntou se o presidente Obama estava tomando lições com o primeiro ministro Berlusconi, flagrado com amigos há alguma semanas numa de suas mansões, com mulheres de programa, todos fantasiados de Adão e Eva. OCorriere della Sera chamou o presidente dos EUA, simplesmente de ‘indiscreto’. Só ele? E Sarkozy?


Pudor ou hipocrisia?


Lendo sobre o grande cronista, poeta e escritor Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) deparei com uma reprodução de entrevista, após sua morte, noJB, sobre jornalismo, quando bunda era uma palavra proibida nos jornais. E se estivesse vivo daria boas gargalhadas. Eis a sua declaração:




‘Trabalhei na imprensa durante a minha vida toda, com um ligeiro intervalo. (…) Mas me recordo que, há tempos, para testar a resistência do copy-desk, noJB, escrevi a palavra bunda. Cortaram para botar traseiro.’


Reconheceu o poeta: ‘Hoje a palavra bunda circula até em fotografia, em desenho, por toda parte. (…) Uma das coisas mais celebradas pela imprensa é a bunda.’


É, poeta, a palavra nos dias atuais alcançou um novo prestígio, aliás ganhou fórum internacional, e logo com quem, protagonizado por dois presidentes de países desenvolvidos, que dispensaram o rito oficial: Barack Obama e Nicolas Sarkozy, cujo ato desnudou o pudor de ambos ao focarem o olhar para ‘aquele local’ de uma mulher brasileira. Inacreditável, poeta, o preconceito é tão forte que ainda há esse tipo de resquício sobre a palavra. No meu computador o traço vermelho sobre a palavra é um atestado da confissão, mesmo. Mandando incluir no vocabulário informático, o redator de texto reage. Pudor ou hipocrisia?

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Professor universitário e jornalista, São Luís, MA