O mais recente processo de mundialização do capital, denominado também de globalização neoliberal, iniciado nos anos 1980, configurado para a América Latina através do Consenso de Washington (1989) e implantado no Brasil nos governos de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, só alcançou sucesso porque contou o tempo todo com o poderoso aparato da mídia, antes mesmo de sua consolidação no campo econômico.
Na década de 1990, o processo de concentração empresarial atingiu praticamente todos os setores da economia, inclusive o setor de comunicações, que abrange não apenas a rede de veículos espalhados pelo mundo mas, sobretudo, todo o conteúdo produzido na forma de informação (jornalismo, documentários), propaganda, indústria cultural (música, telenovelas, cinema, livros) e entretenimento (shows, espetáculos, programas de diversão e curiosidade).
Através desse aparato gigantesco, fundamental para a sociedade dos mercados, para o estímulo permanente e intenso ao consumo de bens e serviços, os grupos empresariais de comunicação, tanto os nacionais quanto os internacionais, atuaram de forma eficiente para desmontar as barreiras políticas, ideológicas e culturais que ofereciam alguma resistência ao domínio do projeto neoliberal.
No caso brasileiro – e de boa parte da América Latina –, a ação estratégica da mídia preparou a opinião pública para o desgaste e o desmonte do Estado, já que interessava ao capital internacional avançar sobre setores monopolizados pelo Estado; interessava especialmente a privatização de serviços públicos com possibilidade de exploração por alguns anos, como a telefonia, energia elétrica, setor financeiro, transportes etc – que permitem margens altíssimas de lucro e acúmulo rápido de dinheiro tirado do povo.
Nesse processo, era preciso desarticular também o aparato legal (quebra dos monopólios na Constituição, ‘flexibilização’ da legislação trabalhista), zerar as exigências fiscais para o fluxo dos capitais especulativos e quebrar as resistências dos movimentos sociais (defensores e praticantes da solidariedade e da inclusão) e das igrejas (regras morais e valores baseados na fraternidade, cooperação, irmandade, solidariedade etc).
O sistema pautou a mídia
Com o propósito de acelerar o neoliberalismo, a sociedade de mercados, a acumulação de lucros e estender os tentáculos da dominação imperialista sobre os países ‘emergentes’, subdesenvolvidos e pobres, o sistema pautou a mídia para desmoralizar e destruir os Estados e os projetos nacionais, enfraquecer a auto-estima dos povos, apoiar governantes submissos e dóceis ao poder do império, especialmente para acatar as regras impostas pelo Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial do Comércio e outros instrumentos a serviço das grandes potências.
Sem esse trabalho de substituição de um ideário por outro, com a troca meticulosa de cada valor e de cada opinião formada, não teria sido possível fixar uma nova hegemonia – a do chamado pensamento único – baseada na aceitação passiva da exclusão econômica e social, da individualidade extremada, da competição em todos os campos, do Estado mínimo, da falta de solidariedade inter e entre classes sociais, da redução da cidadania e da desumanização das relações na sociedade.
Junto com esse processo de desagregação coletiva da nação, o aparato da mídia contribuiu – no campo da doutrinação e da propaganda – para a aceitação e aprofundamento da dependência política e econômica, ao promover a entrega de setores estratégicos (desde a produção energética até os satélites de comunicação militar) para o capital estrangeiro.
Da mesma forma, jogou pesado na desnacionalização de setores industriais consolidados (autopeças) ou em fase embrionária (computação), os quais exercem grande influência no balanço das contas comerciais. Durante anos seguidos, os jornais, as revistas e os veículos eletrônicos – rádio e TV – martelaram na cabeça da população que o país precisa captar recursos no exterior, que a vinda do investidor estrangeiro permite a retomada do crescimento, que o Brasil precisa privatizar determinados setores para poder investir prioritariamente em saúde, educação, habitação e demais áreas sociais.
Para arrematar o espírito de rendição total diante dos interesses do capital e das potências imperiais (que usam seu poder e sua força para determinar relações desiguais com os países mais fracos, pobres e subdesenvolvidos), a grande imprensa brasileira não esboçou qualquer reação ao sucateamento da universidade pública e da pesquisa científica pura e aplicada – de tal maneira a aumentar também a dependência na produção do conhecimento e no domínio das tecnologias.
Imprensa e o sucateamento da universidade pública
A mídia brasileira desenvolveu ampla campanha para a aprovação de uma lei de direitos autorais e patentes imposta pelos Estados Unidos, que vale certamente para o pagamento de licenças e royalties, pelo Brasil, mas não prevê igual reciprocidade para produtos brasileiros lançados ou comercializados no mercado norte-americano. O Congresso Nacional não levou em consideração nem mesmo a experiência histórica de inúmeros países, inclusive EUA, Japão e Coréia do Sul, que deram saltos de desenvolvimento tecnológico e industrial sem respeitar qualquer lei desse tipo e sem se submeter à transferência de recursos para países ‘donos’ de alguma tecnologia.
Não só a opinião pública e o chamado cidadão comum têm aceitado o ideário defendido pelos grupos de mídia, como também as autoridades dos três poderes, o empresariado, a academia e não raramente as lideranças dos trabalhadores. Nos anos 1990, a visão neoliberal praticamente tomou conta de algumas centrais sindicais, de sindicatos e de associações de classe que incorporaram o jogo competitivo do mercado, os modismos das roletas financeiras e especulativas, os discursos e as práticas ultraliberais da superexploração capitalista.
O resultado do desmanche patrocinado pelo lobby pró-imperialismo representou, de um lado, a destruição de conquistas de muitas décadas de lutas (trabalhistas e sociais) e de trabalho realizado (patrimônio público); de outro, a implantação do mais selvagem e brutal processo de exclusão e de empobrecimento do povo brasileiro em toda a história do país, com milhões de desempregados e com queda contínua de renda por anos seguidos. Até o presente momento, esse processo não foi revertido pelo governo federal presidido pelo operário Luiz Inácio Lula da Silva.
As grandes marcas do imperialismo têm sido na quebra do projeto nacional de desenvolvimento, em substituição por um projeto de dependência financeira e tecnológica; na soberania, já que ficou estabelecida uma submissão às imposições de Washington nas questões políticas e econômicas; na dominação intelectual (científica e tecnológica) e cultural, com a aceitação de papel de consumidor, e não de gerador de conhecimento; e nas relações externas, permanentemente controladas e manietadas pelos interesses das corporações e do governo dos Estados Unidos, que teimam em colocar a ALCA no lugar do Mercosul e da liberdade de associação com Europa, Ásia e África.
O domínio do imperialismo tem sido nefasto para o Brasil, especialmente para a população de baixa renda, pobre e miserável, eternamente carente dos bens básicos de sobrevivência e de oportunidades mínimas para alcançar os direitos humanos consagrados na declaração da ONU. O atendimento dessa população – superior a 40 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza – só seria possível se o país pudesse contar com seus próprios recursos para investimento interno.
Cumplicidade das elites, traição dos governantes
No entanto, o grau de dependência é tão brutal que boa parte desses recursos é enviada para o centro do capitalismo na forma de pagamento de juros (quase 100 bilhões de dólares anualmente); outro tanto deixa o país por meio de remessas de lucros, pagamento de royalties e depósitos livres nos paraísos fiscais do exterior. A imensa sangria – típica do sistema imperial predatório – só tem sido possível porque conta com a cumplicidade das elites nacionais, com a covardia e traição dos governantes e com a intensa propaganda dos meios de comunicação para que tal assalto seja aceito com naturalidade e passividade.
O imperialismo, hoje, nem precisa mais de tropas militares para fazer a ocupação, anexação e a espoliação de países dóceis como o Brasil: tudo é feito dentro da lei, com o respaldo das autoridades e aplausos das classes dominantes – que se imaginam, sem muito sucesso, como co-participantes no novo processo de acumulação e saque. A falta de compromisso dessas elites para com o futuro do país nunca foi tão evidente: elas se deleitam em Miami, Aspen e em viagens pelo mundo ‘civilizado’ e desenvolvido enquanto as metrópoles brasileiras se afundam na miséria e na violência.
A mídia brasileira costuma reproduzir a visão colonizada das classes dominantes e segue, sem qualquer questionamento, o pensamento conservador dos veículos de comunicação do centro do império. Não raramente, a revista Veja, por exemplo, é mais realista do que o Partido Republicano e o governo Bush na defesa das incursões guerreiras dos Estados Unidos. Nos atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova York e Washington, a maior parte dos veículos brasileiros incorporou o sentimento patrioteiro difundido pelo governo norte-americano e reverberado pela mídia de massa daquele país. Somente depois de vários dias é que alguns veículos brasileiros ensaiaram construir um olhar nacional para o episódio – bem diferente sob todos os aspectos, inclusive pela visão periférica e com noção mais precisa sobre os danos causados pelo imperialismo nos vários pontos do planeta.
A luta contra o imperialismo exige controle social dos meios de comunicação e da geração de conteúdos – informações e produção cultural – conforme os interesses e as demandas locais, regionais e nacionais. Mais do que isso: as escolas de ensino fundamental e médio e as universidades precisam reforçar a formação crítica, a preparação para o domínio do conhecimento científico e tecnológico, a combinação da educação com o projeto de desenvolvimento nacional, no qual se afirme a independência e a soberania do Brasil.
O sistema de comunicação de massas precisa passar por amplo e profundo processo de democratização, de tal maneira que a concessão de emissoras de rádio e televisão sejam entregues a grupos comunitários, movimentos sociais, associações de classe e para instituições sem fins lucrativos comprometidas com programas voltados para a preservação e o desenvolvimento cultural (regional e nacional), a elevação do nível de informação e consciência, o fortalecimento da democracia e da participação de todos na construção de um país mais justo e mais igualitário.
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Jornalista e professor, chefe do Departamento de Jornalismo da PUC-SP, editor da Revista Sem Terra e diretor da Associação dos Prefessores da Puc-SP (Apropuc)