Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O paradigma Globocop

Os nervosos acontecimentos ocorridos na última semana de novembro, no antigo estado da Guanabara, foram acompanhados de um conselho dado pelas autoridades aos cidadãos: fiquem em suas casas, evitem as ruas. No recesso de seus lares, os cariocas evadidos do espaço público confinaram-se à persona de telespectadores. Coube ao Globocop, e a uma trupe de repórteres de campo hiperexcitados, devidamente inoculados por cargas generosas de adrenalina, a definição dos termos da realidade.


Se Euclides da Cunha pode dizer, em Os Sertões, que o sertanejo é antes de tudo um forte, é possível hoje retificar a proposição e afirmar que o brasileiro é antes de tudo um telespectador. Com efeito, a televisão é a única concessão pública no país com cobertura universal. Vai, com muita folga, adiante dos esgotos, dos hospitais e das escolas. Não é, nesse sentido, exatamente alentador reconhecer que um dos marcadores prediletos de inclusão social, adotados pelos áulicos correntes, diz respeito à facilidade de crédito para compra de hiperaparelhos de televisão.


Trata-se, mais do que isso, da universalização do acesso a uma forma de realidade, na qual se estabelecem agendas que configuram parte da alma dos brasileiros. Sentimentos, atitudes políticas, decisões a respeito da vida, exemplos, enfim, um grande conjunto de referências para a manufatura das identidades pessoais e compartilhadas tem a sua base informacional e normativa fixada pela universalização à qual aludi.


Efeito colateral


Durante os dias de invasão das comunidades no complexo do Alemão, os cariocas desfrutaram de cobertura ininterrupta. A nada encantadora alma das ruas só encontrou alguma inteligibilidade quando mediada pela sua tradução televisiva. Os componentes básicos dessa forma de apresentação reúnem uma estética da informação e a delimitação de um regime preciso e confinado para o exercício do pensamento e da reflexão.


A informação é configurada por uma estética de rapidez e de movimento incessante. Parte-se do suposto de que o consumidor de imagens, o cidadão-telespectador, é cognitivamente mobilizado mais por circunstâncias de ação, do que por oportunidades de reflexão. O brasileiro, nessa chave, é antes de tudo, um sujeito entediável e irreflexivo. Tal como os futuristas italianos, é um adepto incondicional da velocidade como experiência e como valor. Rasantes de helicópteros são, nesse sentido, fundamentais e adequados a tal antropologia, assim como a exibição de repórteres, no terreno, com esgares nervosos e coletes à prova de balas, com cores e logotipos especiais. A estética do combate é trazida para dentro dos estúdios. Foi notável, por exemplo, a indumentária escolhida pelo porta voz da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que compareceu a entrevistas, em estúdio, com seu colete à prova de balas.


Repórteres e entrevistadores hiperexcitados entrevistaram jovens ex-policiais-combatentes, igualmente hiperexcitados. A exibição de imagens de ação incessante operava como suplemento hipercinético ao nervosismo das entrevistas. Um valor maior, portanto, se apresenta: o da adrenalina como virtude cognitiva e como gramática para o tratamento dos dramas da cidade.


Nos marcos da estética da rapidez, o pensamento foi convocado para apresentar suas interpretações a respeito do conflito. Com poucas exceções, ao cidadão-telespectador foi apresentada uma sucessão de especialistas, a repetir os lugares comuns, emanados das versões oficiais e televisivas dos eventos. O ‘especialista’, dessa forma, reforça o que estabelece o narrador originário. Dois marcadores conceituais invariavelmente apareceram nessa prática de reforço de significados: o da ‘guerra’ e o do ‘terrorismo’.


O primeiro marcador – guerra – foi devidamente tratado por excelente e oportuno texto do jornalista João Paulo Charleaux, na edição do Estado de S.Paulo de 1º de dezembro: não há fundamento jurídico na utilização do conceito de guerra, sua carga simbólica, ademais, pode ser tomada como autorização para a matança (ver ‘Não há ‘guerra’ no Rio‘, reproduzido neste Observatório).


Com efeito, mais do que indicar a impropriedade jurídica da metáfora, importa dizer que ela define uma interação cujo objetivo é a eliminação dos inimigos. Ninguém vai à guerra para aprisionar o exército inimigo, mas para eliminá-lo. O inimigo preso é o inimigo que se rende e é protegido por convenções precisas. Trata-se, portanto, de um efeito colateral da guerra e não o seu evento central. O contrário se dá com a ação policial: visa prender e só mata em circunstâncias especiais.


Reforma remota


O uso da imagem do terrorismo é igualmente problemática. No mínimo, é seletiva. Sob terror vivem extensas comunidades da Zona Oeste carioca, sob o domínio de milícias. A erradicação das mesmas é enormemente dificultada pela presença de policiais e de suas ramificações nos chamados ‘poderes constituídos’. Esse é, na verdade, o lado duro e podre de uma polícia que se apresentou de modo heróico e glamoroso na ‘guerra do Alemão’.


Mais do que metáforas, o que parece se fortalecer com o episódio é algo que poderia ser designado como um paradigma Globocop. Um narrador onipotente, onisciente e onipresente, dotado da capacidade de tudo perscrutar e de uma rede de intérpretes fiéis e fidelizados. Seus efeitos, contudo, não cabem nos limites estreitos que uma crítica por vezes paranóica lhe impõe. O paradigma opera no vácuo e na ausência de instituições de controle social sobre os agentes do poder executivo, para não falar da rarefação do mundo da representação política. Sua onipresença abrange múltiplas funções, entre as quais a de um papel autoatribuído de ombudsman de fato dos cidadãos, movido sabe-se lá por que concepção de vida pública. Diante de sua ubiqüidade, os próprios gestores da segurança pública se vêem obrigados a se expressar e agir nos limites da lei. É evidente que isso é positivo, mas, não nos iludamos, a reforma da polícia é algo ainda muito remoto, a despeito da seriedade de alguns de seus operadores.

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Professor Titular de Teoria Política da Universidade Federal Fluminense, pesquisador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e presidente do Instituto Ciência Hoje