Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O pensar faz sofrer

Que a mídia, por sua natureza e função, tenha de registrar fatos passo a passo, é algo sabido por todos. O que, todavia, muitos não percebem é o quanto essa subordinação do jornalismo diário ao ritmo mutante dos acontecimentos impede o necessário distanciamento para a compreensão mais ampla de situações de extrema complexidade. O recente episódio a respeito da libertação das reféns colombianas em poder das Farc é mais que revelador. A narrativa está repleta de ‘aporias éticas’ cuja cobertura não pode caber na urgência de publicações diárias, independentemente de posições ideológicas deste ou daquele veículo de informação.


Talvez a condição de profissional ligado ao campo da comunicação, sem, contudo, desempenhar a função de jornalista, me permita um certo distanciamento desapaixonado. Como observador, percebo-me numa situação não menos difícil, em função de ‘linhas cruzadas’ que tornam a ‘comunicação’ repleta de ‘ruídos’.


Desde o início, tinha a intuição de que o esforço de múltiplos governantes latino-americanos na tentativa da libertação das duas reféns seria inglório, dado o perfil predominantemente conservador dos líderes que encaminhavam a negociação. Um segundo estágio foi viabilizado a partir da figura isolada de Chávez como único mediador. E tudo foi vitória.


Os caminhos da América Latina


Que incômodo, pois, me habita? Por mais anacrônico que pareça o impasse diante do qual me gera assombro, situa-se o desconforto em saber ao lado de quem me ponho. Uma coisa é certa: nada me aproxima de Uribe. Algo, entretanto, me distancia de Chávez e, ainda mais, das Farc. Onde fico? Eticamente, em tom confessional (perdoem-me os leitores), não posso referendar o discurso de um chefe de Estado, eleito pelo voto direto, que reconhece, como lícitas, as práticas das Farc a envolverem execuções e seqüestros. Menos ainda, atribuídas a um projeto político. Não se, num momento de fraqueza (ou de convicção), escolhi a democracia como projeto consolidador da constituição do Estado. Não posso autenticar atos de banditismo. E aí tem início a espiral aporética: ficar a favor de quem?


Seja qual for o tratamento que a mídia oficial tenha destinado à cobertura da ‘libertação’, confesso que preferiria a solução da qual faziam parte vários governos latino-americanos. Por quê? É simples: até hoje, assumo, tenho profundas desconfianças quanto ao perfil ‘esquerdista’ de Chávez. Faltam, ao ‘líder venezuelano’, o arrojo destemido de Guevara e a densidade retórica de Fidel (no ápice de sua vitalidade). Então, o que me incomoda, na cena contemporânea, é ver a América Latina sob os holofotes que iluminam uma figura ‘estranha’ como Chávez.


Mas ficar contra Chávez significa apoiar Bush e Uribe? Não! E tudo retorna à estaca zero. Que argumento eficaz terá usado Chávez para o desfecho ‘épico’? Uma declaração pública de aprovação às práticas criminosas das Farc, ou a injeção de apetitosos recursos financeiros (petrodólares venezuelanos)? Bem, pode ter havido a junção de ambos. Com mais renda, as Farc poderão seqüestrar mais pessoas? Enfim, a questão aporética está posta: que caminhos a América Latina irá escolher para dar conta de políticas governamentais, capazes de assegurar o mínimo de emancipação de amplas populações carentes de tudo?


Ao suspender a tentativa de elucidação dos graves problemas que nos atingem, não pude equacionar o equilíbrio ético, à altura de não me tornar cúmplice de atos criminosos e nem parceiro de políticas conservadoras cujo perfil não disfarça a hipocrisia. Esse é o dilema… Pelo menos, é o meu. É provável que tudo fique mais claro e fácil para quem decide com rapidez e convicção. Infelizmente, tais virtudes não as tenho. Assim, padeço com a dose de sofrimento diário.


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Em tempo: O presente artigo foi concluído e expedido na noite de domingo (13/1). Eis que o noticiário noturno da segunda-feira (14) dava conta de mais um seqüestro de seis pessoas (cinco turistas colombianos e um norueguês), promovido pelas Farc. Curiosamente, os guerrilheiros-traficantes libertaram duas reféns, após seis anos de cativeiro, para, dias após, aprisionarem mais seis. O número terá sido mera coincidência? Tanto faz. O que importa é que, em nome de não demonstrarem fraqueza, voltaram ao ataque com todo o vigor. Por outro lado, as Farc desmoralizaram o possível ‘feito épico’ do ‘líder bolivariano’. E agora? Será que o ‘Grande Irmão’ latino-americano se vai empenhar em defesa de civis inocentes?

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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da Facha, Rio de Janeiro, RJ