A cultura de massa que temos está umbilicalmente conectada com a pauta apresentada instante a instante em algum dos veículos de comunicação em massa. Nada lhe escapa e, por isso mesmo, enorme é sua responsabilidade na criação da geração-consumo que temos ‘em nós’ e também ‘diante de nós’. Tendo como cenário as mudanças climáticas, a degradação ambiental e os extremos corrosivos da riqueza e da pobreza, a transformação de uma cultura de consumismo irrestrito para uma cultura de sustentabilidade ganhou força em grande parte graças aos esforços das organizações da sociedade civil e agências governamentais no mundo inteiro. A par com essas forças, e mesmo permeando-as, temos o poder de influência e onipresença da mídia.
Existem situações-limite em que não é lícito ser espectador de espetáculo nefasto que nós mesmos produzimos. Alardear a desgraceira toda, desnudar os mecanismos de poder envolvidos no debate para se criar políticas públicas de alcance mundial e, acima de tudo, alertar que o futuro é hoje, são tarefas que os meios de comunicação não podem e não têm a quem delegar.
O estágio de ‘aldeamento’
Além das políticas de informação e tecnologias ‘verdes’, a transformação que precisamos realizar vai exigir um exame sério da nossa compreensão acerca da natureza humana e dos ‘esquemas culturais’ seguidos por instituições do governo, por empresários da área de educação e dos meios de comunicação ao redor do mundo. Perguntas sobre o que é natural precisam ser reexaminadas criticamente. A questão do consumo e da produção sustentável deverá ser considerada no contexto mais amplo de uma ordem social cambaleante que se caracteriza pela competição, violência, conflito e insegurança da qual ela própria é parte.
Os meios de comunicação poderiam considerar promover tais mudanças visando a um consumo e produção sustentáveis, algo que implicitamente nos levará a desafiar normas e valores culturais que têm promovido o consumismo a todo o custo. Concepções subjacentes deverão ser examinadas. Estas questões incluem concepções da natureza humana, do desenvolvimento (e da natureza do progresso e da prosperidade); das causas das recentes crises econômicas, dos processos de desenvolvimento tecnológico, dos meios e dos fins dos processos educativos. Uma tarefa gigantesca? Sim, mas não maior que o poder de mobilização e influência que os meios de comunicação em massa detêm, na medida em que o planeta chegou ao estágio atual de ‘aldeamento’, ou seja, o planeta mostrou ser pequeno, ao alcance de uns poucos cliques na internet, ao alcance de imagens replicadas por satélites estrategicamente localizados.
Tempo de avançar
O alargamento das fronteiras da informação alargou também nossas visões do mundo e vestiu velhas palavras com novos e desafiados significados. A palavra ‘estrangeiro’, quando utilizada nos anos 1950 – portanto, há bem pouco tempo –, trazia consigo sentidos de reserva, suspeita, medo e tudo porque nossos sentidos não estavam acostumados a ver nossos semelhantes residentes em outros continentes com aquelas nossas características humanas, plausíveis, reais. Hoje, a palavra ‘estrangeiro’ perdeu as garras, depôs pretensos tentáculos venenosos e assim do nada deixou de nos causar emoções negativas. ‘Estrangeiro’ passa a ser apenas mais uma palavra desdentada que não mais aponta para os demais como nossos dessemelhantes. E não ouviremos mais nos telejornais que tal evento ‘aconteceu no estrangeiro’. É tudo Terra, é tudo azul, é tudo aquele pálido ponto azul perdido na imensidão do espaço. Há décadas ‘no estrangeiro’ deixou de compor manchete em jornais. Isso se deu graças ao avanço dos meios de comunicação.
Estará a mídia, a grande mídia, preparada para promover novos conceitos de cidadania mundial, de paz internacional, de apreço e defesa dos nossos esgotáveis recursos naturais? Estarão os profissionais da comunicação desarmados o suficiente para municiar o inevitável debate sobre temas que afetam a todos, como a segurança mundial, os meios para a produção de melhores condições de vida a populações historicamente massacradas, massas anônimas da humanidade que somente entram no futuro pela porta dos fundos?
É vital que os meios de comunicação revejam sua missão, seus objetivos e se pautem por cima. Que não vejam apenas os dias que correm, mas que lancem o olhar sobre os próximos 20, 30, 50 anos. É tempo de aprendermos uns com os outros, de expressarmos perspectivas e experiências e avançarmos coletivamente rumo à construção de uma sociedade justa e sustentável. Isso tudo transcende esquerda e direita. Isso tudo abomina a partidarização política dos meios de comunicação.
Contradição paralisante
A questão da natureza humana tem um lugar importante no discurso sobre o consumo e produção sustentáveis, uma vez que nos leva a reexaminar, em níveis mais profundos, quem somos e qual nosso propósito na vida. A experiência humana é essencialmente de natureza espiritual: ela está enraizada na realidade interna, ou o que alguns chamam de ‘alma’, que todos nós partilhamos em comum. A cultura do consumismo, no entanto, tende a reduzir os seres humanos a meros concorrentes, em consumidores insaciáveis de mercadorias e objetos freneticamente alvos de manipulação do mercado.
É comum aceitarmos como se certa fosse a noção de que deparamos com um conflito insolúvel entre o que as pessoas realmente querem (ou seja, para consumir mais) e o que a humanidade precisa (ou seja, um acesso equitativo aos recursos).
Como, então, poderemos resolver a contradição paralisante que, por um lado, desejamos um mundo de paz e prosperidade, enquanto, por outro lado, grande parte da teoria econômica e psicológica retrata seres humanos como meros escravos de seus desejos egoísticos?
‘Sonhos impossíveis’
As faculdades necessárias para construir um mundo mais justo e uma ordem social sustentável são aquelas de sempre, estas mesmas que podem atribuir nobreza ao caráter humano: moderação, justiça, amor, motivos sinceros, serviço ao bem comum. Ora, tão antigas quanto elas, essas palavras vêm sendo julgadas ao longo dos séculos como ideais ingênuos. Sim, pensar grande, abarcar a espécie humana em um pensamento maior de fraternidade vem sendo rotulado como perda de tempo, ingenuidade rematada. Como se devesse merecer nossa atenção, ocupar nossos milhões de neurônios apenas aquelas questões mais comezinhas e que falem diretamente ao nosso bem-estar individual, à nossa ‘felicidade’ pessoal. E, nada mais ridículo que isso, uma visão castradora do muito de bom e de belo e de justo que poderia ser nosso. E de todos nós.
Mas sei que devo insistir em um ponto: justiça, moderação, serviço altruístico à nossa espécie são algumas das qualidades necessárias para superar os traços de egoísmo, ganância, apatia e violência que no mais das vezes são fomentadas pelo mercado com as bênçãos de forças políticas que asseguram a vigência dos atuais padrões insustentáveis de consumo e produção.
A vida, não nos iludamos, é muito mais que arenga política, que escaramuças entre PT e PSDB. É tempo de entendermos a brisa que sopra nesta frase de Clarice Lispector: ‘O que alarga a vida de uma pessoa são os sonhos impossíveis.’
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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter