Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O poder de interpretar o passado

Muito se falou sobre o editorial (intitulado ‘Limites a Chávez’) publicado na Folha de S.Paulo no dia 17/02. O argumento apresentado pelo jornal foi contestado por intelectuais, leitores e até jornalistas. Nada mais democrático, apesar da revolta da redação contra as opiniões de dois pensadores ligados à esquerda. No entanto, um ponto desta discussão parece ter sido esquecido: a memória.

Eugênio Bucci escreveu, no artigo ‘A história na era de sua reprodutibilidade técnica’ [In. BUCCI, E. Videologias: Ensaios Sobre Televisão. Eugênio Bucci, Maria Rita Kehl. – São Paulo: Ed. Boitempo, 2004], que os meios de comunicação hoje têm o poder de reproduzir o passado e mesmo de deturpá-lo. Bucci utilizou como exemplo a cobertura da Rede Globo de televisão sobre o movimento das Diretas Já!, quando a principal emissora do país transformou a passeata pela restauração da democracia em ‘mais um dos eventos’ da comemoração do aniversário de São Paulo.

Com o papel de centralidade nas sociedades contemporâneas, a mídia é uma das principais fontes de pesquisa sobre a história. São inúmeros os estudos – da História à Ciência Política – que utilizam os materiais midiáticos, principalmente jornalísticos, para entender os mais diversos momentos do passado. Nesse contexto, a imprensa é um material considerado credível para interpretar e entender aquele momento do passado.

O efeito da qualificação

O pesquisador inglês (já falecido) Roger Silverstone argumenta algo nesse sentido. Ele fala que ‘na ausência de outras fontes, a mídia tem o poder de definir o passado: de apresentar e representá-lo’ (ver o livro Por que estudar a mídia?). É exatamente sobre estes pontos que pretendo me aprofundar neste artigo. Como discuti acima, a imprensa – justamente por ser uma representação do presente – é e será uma fonte histórica no futuro.

A versão apresentada pela Rede Globo sobre as Diretas Já! foi desmentida por vários outros órgãos de imprensa e, muito por isso, não conseguiu lograr tanto sucesso e se tornar a versão oficial na opinião pública. Entre estes, a Folha de S.Paulo teve papel ativo, na medida em que cobriu aquele aniversário da cidade de São Paulo como o evento político que ele realmente foi. Mas é este mesmo periódico que vem a público qualificar o regime de exceção vivido pelo Brasil entre 1964 e 1985 como uma ‘ditabranda’ – ou seja, uma ditadura light, tranqüila, se comparada com a vivenciada por outras nações.

Uma barbaridade. É a tentativa de se criar uma escala de mensuração da crueldade. Como se fosse possível aferir o grau de brutalidade de, vejam só, regimes brutais. Estima-se que mais 400 pessoas tenham sido assassinadas pela ditadura. De 1 a 400 a ditadura continuaria dura, somente por ser um regime político que restringe e condena as liberdades de uma população.

No entanto, não é esse meu foco. O ponto é discutir o efeito dessa qualificação. Para tal, proponho uma ida ao futuro, imaginar que em 2039 um pesquisador da área depare com o já referido editorial. O que ele iria imaginar? Que durante 21 anos o Brasil viveu sobre um regime brando? Que respeitava os direitos individuais? A liberdade de pensamento?

Enfrentar e lutar com erros e acertos

Essa não é a única ação que visa a reconstruir a história do Brasil. Basta lembrar o livro ‘oficial’ sobre o Jornal Nacional, que omite as ligações deste que é o principal telejornal do país com o regime militar. Ou mesmo a biografia de Roberto Marinho, escrita por Pedro Bial, que não fala sobre o poder político do falecido proprietário das Organizações Globo.

É mais que necessário refletir sobre este tema. Qual é a imagem que o Brasil quer construir para o seu futuro? Não se deve somente pensar no caso brasileiro. Os meios de comunicação devem se preocupar em lembrar às próximas gerações sobre o que aconteceu no mundo, sobre as barbaridades cometidas pelos seres humanos ao longo das décadas.

A ‘ditabranda’ da Folha de S.Paulo foi uma escorregada do jornal e mais: foi um desrespeito à história deste país e ao futuro também. Afinal, ao invés de utilizar o ‘número de mortos’ como critério de avaliação sobre a maldade dos regimes não democráticos, é obrigação dos meios de comunicação (re)lembrar e ensinar a todos o quão dura é qualquer ditadura, da esquerda à direita. Para encerrar, vale novamente recorrer a Silverstone que diz:

‘Estudar a relação da mídia com a memória não é negar a autoridade do evento que é foco da recordação, mas insistir na capacidade da mídia de construir um passado público, assim como um passado para o público.’

É preciso enfrentar nosso passado, lutar por ele, requerê-lo e passá-lo para o futuro como ele de fato foi, com erros e acertos. Com ditaduras e democracias. Com ajuda ou não da imprensa.

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Estudante de Comunicação Social, Brasília, DF