‘Nós, Povo da Liberdade, mulheres e homens da Itália, temos orgulho de ser cidadãos de um dos países mais avançados do mundo. Temos orgulho de pertencer a uma civilização milenária, que deu à humanidade conquistas importantes. Por isso queremos que a Itália progrida no sulco da sua tradição, sempre mais européia e ocidental’ (
ver aqui).Assim reza a carta de valores do Povo da Liberdade (PdL), partido do primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi. Por ‘tradição ocidental’, entenda-se a defesa de valores como a iniciativa privada, a liberdade individual e a democracia, fundamentos ideológicos das nações que, na concepção européia, constituem o Ocidente: o oeste europeu e os Estados Unidos. Foi para exportar o valor da democracia para o ‘resto’ do mundo, por exemplo, que Berlusconi apoiou George W. Bush na invasão do Iraque.
O ostentado ocidentalismo, todavia, não impede o governo italiano de cultivar relações com o coronel Khadafi, com o qual assinou um acordo que permite que imigrantes flagrados em águas territoriais italianas sejam deportados para a Líbia. Não obstante as advertências da ONU e União Européia sobre o que é considerada uma violação do direito internacional, o poder executivo continua o seu braço de ferro contra a imigração clandestina, linha internamente recompensada por uma ampla aprovação popular, reforçada por campanhas midiáticas que criminalizam o estrangeiro.
Liberdades pessoais
Atualmente, porém, a maior contradição italiana em relação aos valores ocidentais que professa reside no absoluto controle da informação por parte de Berlusconi, proprietário das três maiores redes de TV do país e detentor de um controle político que, como chefe de Estado, exerce sobre a televisão pública. Controle este que se faz sentir também no âmbito da imprensa, onde os jornais aliados ao governo dirigem ataques duríssimos a quem ouse criticar publicamente o primeiro-ministro.
A despeito da amplitude do seu poder midiático, Berlusconi tem usado de intimidações contra o que considera uma informação ‘canalha’. Por isso, processou o jornal La Repubblica e convidou empresários a não investirem em jornais que falem de crise econômica, qualificando como ‘anti-italiano’ o comportamento de quem insista em ‘caluniar’ o governo e em divulgar uma ‘má imagem’ da Itália no exterior.
A indignação de Berlusconi tem aumentado desde que se viu arrastado em um escândalo envolvendo escorts e ninfetas fotografadas nas suas residências. Tudo isso enquanto o seu governo dava vida a um projeto de lei que prevê cadeia e multa para prostitutas e clientes. Apesar do clamor internacional provocado, os principais telejornais italianos praticamente ignoraram a notícia, obedecendo a decisão de não dar voz a ‘fofocas’ de alcova. Ao que parece, o conceito de liberdade individual tem sido reduzido à defesa das liberdades pessoais de Silvio Berlusconi, garantidas constitucionalmente por uma lei que, no seu último mandato, lhe concedeu imunidade judicial.
Democracia fragilizada
Semana passada, o programa Anno zero dirigido e apresentado por Michele Santoro e transmitido pela RAI 2, apresentou pela primeira vez aos telespectadores italianos Patrizia D´Addario. Acompanhante de luxo e ex-candidata da coalizão do governo, ela tornou-se o centro de um escândalo político quando, indagada pela polícia sobre um giro de prostituição, entregou uma gravação que provava ter passado a noite com o primeiro-ministro.
Ao programa, que reproduzia uma entrevista concedida por Patrizia ao diário espanhol El País, seguiu-se o anúncio do governo de uma convocação dos dirigentes da RAI para verificar se a transmissão garantia ‘uma informação completa e imparcial’, prerrogativa da TV pública. Sem se deixar intimidar, Santoro anunciou para aquela noite a presença de Patrizia na sua transmissão, provocando imediatas reações: os expoentes do governo boicotaram o debate televisivo, enquanto o ministro das Comunicações afirmou que será necessário ‘verificar’ se ‘um programa deste tipo, com este tipo de presença’ seja compatível com o serviço público. Berlusconi, até então não havia se manifestado.
Em geral, os italianos se orgulham da condição própria de sociedade ocidental e democrática, cujos valores acreditam servir de modelo para países menos ‘desenvolvidos’. No momento, porém, a maioria dos cidadãos parece não se dar conta da grande anomalia que representa, no cenário das democracias ocidentais (incluindo as latino-americanas), a concentração dos meios de comunicação nas mãos de um único homem, o mesmo que tem dominado a cena política do país nos últimos 15 anos.
O completo condicionamento da opinião pública tem transformado a democracia italiana em uma instituição fragilizada, que cede aos golpes quotidianos de um poder autoritário, contra o qual é sempre mais difícil manifestar-se.
******
Mestre em multimeios