Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O pontífice maculado

Nenhum dos vaticanistas ou vaticanólogos convocados pela imprensa chegou sequer perto de acertar o nome do novo papa. Até minutos antes de ser feito o anúncio na Praça de São Pedro, o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio não havia sido citado pelos especialistas, mesmo tendo chegado, em 2005, perto de vencer o cardeal Ratzinger, que acabou se tornando o papa Bento 16.

O fato serve para muitas coisas, inclusive para lembrar que a cúria romana governa a igreja, não o mundo. Por mais que os teóricos e estudiosos se esforcem, as razões da cúpula eclesiástica não podem ser entendidas fora do seu próprio ambiente.

Nas edições de quinta-feira (14/3), os jornais tentam suprir as lacunas das sessões de adivinhação realizadas na véspera, mas apenas confirmam que Bergoglio estava fora de suas análises e que sua eleição foi uma completa surpresa. Ainda assim, especialistas e meros curiosos tentavam, após a eleição, aproximar suas apostas do fato consumado. Em alguns casos, como o de um comentarista da política nacional enviado pela Globonews ao Vaticano, o desempenho chega ao ridículo: o jornalista montou pacotes de informação e opinião que podiam ser rastreados quase literalmente no Google, para fazer seus boletins instantaneamente "especializados".

Como se descobre isso? Basta anotar trechos de frases do jornalista e colocar no site de busca.
A necessidade de preencher longos períodos de tempo com improvisações é o terror de radialistas e apresentadores de programas noticiosos. E a conveniência de manter no ar figuras conhecidas do público, apesar de não especializadas, pode produzir momentos embaraçosos. Pressionados, esses profissionais vivem no fio da navalha, correm o risco de protagonizar verdadeiras "videocassetadas" verbais, apropriando-se do conhecimento alheio como se fosse seu.

Apesar de tudo, a cobertura dos grandes jornais brasileiros não deixa muito a desejar, se comparada à da imprensa internacional. Os perfis apresentados aos leitores não se distanciam do que é oferecido pelas edições eletrônicas do New York Times, do britânico The Guardian ou do espanhol El País.
Os jornais brasileiros também não se omitem ao comentar as acusações de defensores dos direitos humanos na Argentina, de que o cardeal Jorge Mario Bergoglio, agora encarnando a figura do papa Francisco, colaborou com a ditadura militar que dominou a Argentina entre 1976 e 1983.

A sombra da ditadura

De certa maneira, a publicação das acusações induz a certo realismo na interpretação do fato histórico que representa a eleição de um papa latino-americano, o primeiro não-europeu em 1.300 anos e o primeiro integrante da Companhia de Jesus a dirigir a igreja católica.

As reiteradas apostas sobre a cúria eleger um papa conservador ou não, pertencem ao mundo laico: a igreja não suportaria um pontífice "moderno", mas ao eleger o cardeal argentino o conclave escolhe o caminho da crise: ainda que venha a ser chamado, daqui para a frente, de Sua Santidade, Francisco haverá de arrastar por todo seu pontificado as suspeitas que pesam sobre Bergoglio.

As denúncias sobre suas omissões e até seu eventual protagonismo na perseguição a padres que militavam em favelas de Buenos Aires invadiram as redes sociais imediatamente após o anúncio de seu nome. Os jornais se concentram na história dos padres Francisco Jalics e Orlando Yorio, que foram presos uma semana depois que Bergoglio lhes retirou as licenças ministeriais, e submetidos a torturas durante mais de um mês. Também registram a versão do então provincial dos jesuítas na Argentina de que, ao contrário, foi ele que os tirou da cadeia.

No entanto, o fato mais escabroso das relações da igreja argentina com a ditadura tem como protagonista central o padre Christian Frederico von Wernich, que foi capelão da polícia de Buenos Aires e gozava de ampla proteção do arcebispado portenho. Von Wernich participou ativamente da perseguição a opositores do regime, inclusive sacerdotes como ele. Quando apareceram as primeiras acusações, ele foi protegido pelo então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio.

Preso no Chile, onde era mantido como padre da cidade de El Quisco, sob o nome falso de Christian Gonzalez, Wernich foi condenado à prisão perpétua em 2007, por envolvimento direto em 34 prisões ilegais, 31 casos de tortura e sete assassinatos. Supõe-se que o número de suas vítimas seja maior, dada a incerteza sobre o total de desaparecidos.

Com Bento 16, a igreja tinha que lidar com acusações de pedofilia. Sob Francisco, será assombrada pelos fantasmas da ditadura argentina.