As democracias liberais constituem, por definição, espaços onde deve haver pluralidade e diversidade de idéias. Nelas convive-se, todavia, com uma contradição importante e ainda não resolvida. Como existe uma instituição – a mídia – que tem o poder de construir a representação social dominante e a agenda pública de discussão, nos debates onde ela tem interesse direto, o adversário (indivíduos, instituições ou o próprio Estado) já começa a disputa em desvantagem.
Os empresários de mídia, ou seus representantes, muitas vezes constroem o seu discurso como se existisse um lugar de fala acima e fora de qualquer interesse, um privilegiado lugar neutro de onde eles poderiam, com total isenção, acusar e julgar os adversários.
Dentro dessa falácia, um dos recursos utilizados pelos defensores do status quo legal da mídia no Brasil tem sido desqualificar os seus críticos como sendo anticapitalistas e antiempresariais. É um recurso nem sempre bem intencionado, porque consciente de sua fantasia.
Gostaria de argumentar que existe, ao contrário, na mídia brasileira – hegemonicamente privada e comercial – um arraigado preconceito anti-Estado, que rejeita in limine a maioria das iniciativas do Estado para o setor. Por mais que se ampare no trauma ainda recente dos tempos do Estado autoritário da ditadura militar, esse preconceito não se justifica.
Os empresários de mídia e seus representantes, em oposição clara ao que reza o princípio constitucional sobre a complementaridade dos sistemas privado, público e estatal, agem como se devesse existir apenas um sistema – o sistema privado, isto é, o sistema deles.
As evidências mais recentes desse preconceito anti-Estado são as reações contrárias tanto à criação da TV Brasil – Canal Internacional, quanto à criação das RTVI – Retransmissoras de TV Institucionais. Como já tratei neste Observatório da TV Brasil [veja remissão abaixo para o artigo ‘Uma nova alternativa no ar?’], vou me ater agora às RTVI.
Conselho paritário
Por meio do Decreto nº 5.371, o presidente da República aprovou, em 17 de fevereiro último, o Regulamento do Serviço de Retransmissão de Televisão e do Serviço de Repetição de Televisão. Pelo regulamento, existem três tipos de serviços de retransmissão de televisão: o comercial, o educativo e o institucional. A novidade é o Serviço de Retransmissão de TV Institucional (RTVI). E o que vem a ser este serviço?
O RTVI é a modalidade destinada a retransmitir, de forma simultânea ou não-simultânea, os sinais oriundos de estação geradora de televisão explorada diretamente pela União. As RTVI só poderão realizar inserções de programação até o percentual de 15% do total de horas da programação retransmitida e que atendam a finalidades institucionais, educativas, artísticas, culturais e informativas. Além disso, o horário disponível para inserção de programação local deverá ser distribuído da seguinte forma: um terço para a divulgação das atividades do Poder Executivo do município; um terço para a divulgação das atividades do Poder Legislativo, preferencialmente para a transmissão de suas sessões; e um terço para entidades representativas da comunidade, sem fins lucrativos, devidamente constituídas e sediadas no município, assegurada a pluralidade de opiniões e representação dos diversos segmentos sociais.
O regulamento ainda prevê a existência de patrocínio, sob a forma de apoio institucional, para a produção da programação a cargo das entidades representativas da comunidade local, entendido como financiamento dos custos relativos à produção da programação ou de um programa específico. Este apoio refere-se somente à veiculação, por meio de som e imagem, de mensagens institucionais da entidade apoiadora, sem qualquer menção a seus produtos ou serviços.
Está ainda prevista a constituição de um conselho de programação composto, de forma paritária, por representantes indicados pelo Poder Executivo municipal; pelo Poder Legislativo municipal, assegurada a representação das diversas correntes partidárias; e por representantes da comunidade eleitos entre os candidatos indicados por entidades representativas locais. Este conselho terá a finalidade de definir diretrizes, acompanhar as inserções de programação, bem como subsidiar o Ministério das Comunicações (MiniCom) no exercício de sua competência fiscalizadora.
Público, privado e estatal
Trata-se, portanto, de retransmissoras não-comerciais, que não podem vender espaços publicitários, e que – nos 15% da programação destinados a inserção local – necessariamente terão forte vínculo com a comunidade. Segundo noticiado, a idéia surgiu na TV Senado, interessada em aumentar o seu alcance até agora limitado apenas aos municípios onde existem operadoras de TV paga. Seria o equivalente à criação de uma rede nacional de TVs exploradas pela União, na qual as afiliadas são as prefeituras municipais. Como se sabe, as redes de afiliadas das TVs privadas comerciais existentes já atingem praticamente a todos os municípios brasileiros.
Quais têm sido os argumentos dos empresários da mídia contra essa iniciativa do Estado? O primeiro argumento é de que o governo não os consultou. O segundo é legalista: dizem que as RTVI não poderiam ser criadas por decreto, somente por lei. Terceiro, alegam que as RTVI serão usadas como moeda de troca política e para propaganda.Quarto, alegam que o MiniCom não terá como fiscalizar as RTVI. E quinto, alegam que as RTVI vão tirar anunciantes das emissoras de TV privadas.
Pergunto a você, leitor: um governo democrática e legitimamente eleito, no exercício de suas funções, precisa consultar os empresários de mídia toda vez que toma uma iniciativa no setor? Pode ser considerado moeda política e propaganda um instrumento autorizado para qualquer prefeitura independente do partido ao qual pertence o eventual ocupante do cargo de prefeito? A alegada incapacidade de fiscalização deve impedir a criação das RTVI ou deve provocar o melhor aparelhamento do MiniCom para poder fiscalizar com eficiência? Como um canal não-comercial poderia tirar anunciantes de canais comerciais?
Na verdade, o preconceito anti-Estado esconde uma questão que nunca é colocada pelos empresários de mídia: as emissoras de rádio e televisão são concessões públicas precárias, renováveis ou não. Vale dizer, não são propriedade privada de ninguém. Elas devem atender prioritariamente ao interesse público e não ao interesse comercial privado dos seus eventuais concessionários.
Diante do histórico preconceito anti-Estado dos empresários de mídia, fica a questão: será um dia possível cumprir o que determina a Constituição, isto é, a complementaridade dos setores privado, público e estatal? A tomar como referência as últimas reações do sistema privado às iniciativas do Estado – democrático e legítimo – só há uma resposta possível e, infelizmente, ela é negativa.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)