Certamente em um aspecto relevante o presidente Lula é um fiel representante do povo brasileiro: ele não lê. Como declarou em entrevista ao jornalista Mario Sergio Conti, publicada pela revista piauí [ver versão da revista aqui e a íntegra da entrevista, aqui], não é a falta de tempo que o impede de ler, mas, segundo o próprio mandatário máximo da nação, não é necessário ler para quem, como ele, conversa diariamente com inúmeras pessoas.
Todos somos, em grande medida, produtos do meio em que vivemos. Com Lula não é diferente. Ao ser eleito presidente ele não se transformou da água para o vinho, ao menos pessoalmente. A grande massa dos brasileiros não foi educada para gostar de ler. Orgulhamo-nos de ser uma mistura do branco europeu (português) com o índio e o negro. Nos três casos, culturas fundamentalmente orais.
Se deveríamos ter alguma esperança de menos oralidade, ela adviria da terra de Camões e Fernando Pessoa. Portugal sempre foi em termos de escolarização um dos países mais atrasados da Europa. Portugal e Espanha. Nos dois casos, a herança católica foi fundamental. Quanto mais fervoroso é o catolicismo, menos escolarizado é o rebanho. Até hoje o interior do Nordeste, onde fica a Garanhus de Lula, é a região mais católica do Brasil e a que apresenta os menores índices de escolarização.
Pode-se matizar o efeito da região afirmando que Lula migrou muito cedo para o ‘Sul Maravilha’. Sem dúvida isso teve impacto na sua formação, mas também o teve o histórico familiar. De uma família cuja herança religiosa e escolar não viria a contribuir para que o futuro presidente do Brasil gostasse de ler.
Palha do milho
Nos Estados Unidos em 1810, a população branca totalizava 5.862.004 pessoas. No mesmo ano, havia 359 jornais com uma circulação de 22.321.700 cópias. Isso significava que havia 3,81 exemplares de jornais para cada habitante branco. A população e a circulação de jornais continuaram crescendo, a segunda mais rápido que a primeira. Quarenta anos mais tarde, em 1850, a população branca era de pouco mais de 19,5 milhões de habitantes. A circulação de jornais aumentou para 426.409.978, o que dava 21,81 exemplares por pessoa.
A tradição americana é menos oral e mais escrita. A brasileira é mais oral e menos escrita. Barack Obama, o Lula americano, é professor da Universidade de Chicago, a que tem a maior quantidade de prêmios Nobel. Lula veio do sindicalismo. A biblioteca do Congresso americano é a maior do mundo. O Brasil é o país onde o Big Brother mais faz sucesso. Novelas não há lá como cá, mas elas existem e fazem muito sucesso em Portugal.
As tradições são diferentes, mas estão aí para ser mantidas ou alteradas. As críticas e os elogios a Lula são muitos e variados. Há os que dizem que nunca neste país se fez tanto pelos pobres quanto em seu governo; por outro lado, há aqueles que consideram estarmos diante de um governo cuja prática da mentira é completamente disseminada.
Quanto a isso, o exemplo mais invocado é o do mensalão. Lula negou com veemência saber que seu principal auxiliar na época, José Dirceu, coordenava um esquema de compra de votos no parlamento. Nunca saberemos se Lula sabia ou não, temos de acreditar no que ele disse, como acreditamos na entrevista em que ele afirma que não lê porque sente azia. Aliás, aqui até caberia um mentirinha, uma white lie, como chamam os americanos: Lula poderia ter dito que lê com freqüência e seu exemplo deveria ser seguido pelo povo brasileiro.
Lula é produto do meio, mas também age sobre ele. O presidente ou primeiro-ministro de um país é um líder. Ele serve de exemplo para várias gerações de compatriotas que governa. Para pessoas como eu, que dependem muito da leitura para se aperfeiçoar, é lastimável ver que o presidente de meu país não faz a menor questão de liderar o povo no esforço de se instruir e ler mais. Dirão os defensores do governo que nunca se fez tanto pela educação brasileira quanto foi feito no governo Lula. Pode até ser verdade, mas não exclui o exemplo presidencial. Não exclui a possibilidade de o presidente declarar, sem precisar necessariamente mentir, que acompanha com freqüência o noticiário da imprensa.
Aprendi com colegas antropólogos que a socialização de cada um de nós molda até os pequenos detalhes de nosso comportamento. Sugiro ao leitor que considere esse ensinamento ao ver alguém que nunca pegou em um livro manuseá-lo pela primeira vez. Simplesmente a pessoa não sabe o que fazer, não sabe por onde começar, como lidar com as páginas etc.
Recentemente, num vôo doméstico, vi uma pessoa forçando a porta da cabine do piloto pensando que era o banheiro. Como no exemplo do livro, essa pessoa provavelmente nunca havia voado antes. Uma vez, fui comer pamonha com um alemão que recebi no Brasil. Ao pegar a pamonha ele a mordeu imediatamente, sem saber que antes era necessário retirar a palha do milho. Aquele que sabe onde fica o banheiro do avião e sabe como comer a pamonha tende a rir das pessoas que forçam a porta do piloto ou mordem a palha do milho. Aqueles que costumam ler vários livros por ano, ler jornais e revistas, não vão rir da declaração de Lula, mas chorar.
Soluções mágicas
Ler é algo trabalhoso e cansativo, não há dúvidas. Como qualquer coisa na vida, ler exige treinamento. Uma criança recém-alfabetizada pode facilmente adquirir o hábito da leitura e nunca mais abandoná-lo. Ela foi treinada na hora certa. As pessoas que tiveram a trajetória de Lula na mesma época em que ele foi socializado dificilmente foram incentivadas a adquirir esse hábito. Isso isenta Lula de responsabilidade quanto a não gostar ou não ter o hábito de ler.
A minha sogra é descendente de alemães e foi criada em Santa Catarina. Camponesa na origem, do Vale do Itajaí, mais precisamente de Rio do Sul, a escolaridade dela é muito semelhante à de Lula. No Natal, o meu filho pediu ao Papai Noel o livro dos recordes da cervejaria Guiness. A minha sogra se interessou e leu várias partes do livro. Ela é de formação luterana, Lula é católico. Mais um fator que isenta Lula de responsabilidade, não como no caso do mensalão, mas sim da responsabilidade de não gostar de ler.
Na entrevista à revista piauí, Lula fala mais. Afirma que a imprensa não merece ser lida porque trata muito mal o seu governo. Ele vai além e diz que a TV pública pode contribuir para a ampliação do debate político no Brasil e que as discussões sobre economia nas TVs não públicas dispensam os professores universitários como Maria da Conceição Tavares e mobilizam apenas a opinião dos economistas do mercado financeiro.
O presidente acredita nas mudanças de cima para baixo. Faça-se uma TV pública (de preferência sob o controle do seu governo) que o nível do debate será mais elevado. Nada disso. Quem eleva o nível do debate não são as emissoras, mas os receptores. Muito mais efetivo e louvável para aumentar a qualidade do debate sobre política e economia será elevar o nível educacional da população, treinar os brasileiros no hábito da leitura. Isso, porém, não gera empregos no curto prazo.
A intervenção mágica, de fundação de uma TV pública, em nada vai alterar a pauta de nossas emissoras. O Big Brother Brasil não vai morrer de morte matada, mas de morte morrida. Há em curso no Brasil um lento processo de erosão da audiência das novelas. Isso se deve a vários fatores. Muitos mencionarão a internet, mas um deles, de efeito lento e prolongado, é a perda de força da oralidade por meio do aumento da escolarização e da leitura. Quanto mais leitores existirem, menos audiência haverá para novelas e big brothers. Ou melhor, menor será a repercussão de programas que dependem da tradição oral para que tenham sucesso.
A opção por uma TV pública revela uma crença em soluções mágicas, algo típico das pessoas que têm escolaridade mais baixa. Perde-se o emprego, faz-se promessa para conseguir outro ou pede-se ao prefeito que abra novos concursos públicos. Trata-se de uma saída mágica, que não é baseada na solução racional e sistemática. Cai-se, supostamente, o debate da TV brasileira, funda-se uma TV pública na qual são depositadas as esperanças de elevação do nível das discussões. Vamos ler, pessoal, vamos ler.
******
Sociólogo e professor universitário, autor de A Cabeça do Brasileiro (Editora Record)