Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O princípio do avestruz

É velha conhecida dos linguistas a regra da quarta proporcional. Assim: se a criança sabe que o futuro do verbo comer é ‘comerei’, ao conjugar o futuro de trazer, ela pode dizer ‘trazerei’. Esta é a quarta proporcional, um fato lógico, enquanto ‘trarei’ é um fato de língua, que se adquire com a experiência progressiva do idioma.

A regra pode ser aplicada a situações sociais mais complexas: Se alguém ofende judeus e é socialmente classificado como racista ou antissemita, parece lógico que ofensas dirigidas aos negros tipifiquem o racismo. Aliás, o antissemitismo, como bem mostra o antropólogo Louis Dumont em Homo Aequalis, é a forma princeps do racismo no Ocidente.

Trata-se de um tipo simples de raciocínio que pode servir para dirimir certas dúvidas quanto às ambigüidades da discriminação. Não comparece aqui nenhum vezo acadêmico, mas um exercício de observação de imprensa, considerando-se as repercussões do episódio ‘Monteiro Lobato/bloco carnavalesco ‘Que merda é essa?’ sob o pano de fundo do incidente em Paris com John Galliano, estilista da Casa Dior (ver, neste Observatório, ‘Monteiro Lobato vai para o trono?‘ e ‘Monteiro Lobato não precisa de buzinadas‘).

Eugenia rediviva

Todo mundo está a par, mas vale um pequeno resumo. De cara cheia do que não se sabe, o estilista que veste (agora, vestia…) celebridades insultou judeus em pleno Marais (bairro parisiense com uma presença numerosa de comércio e moradores judeus), além de proclamar o seu amor por Hitler. As conseqüências foram imediatas: Galliano não só foi demitido da Dior como as roupas que ele assinara para as atrizes da festa do Oscar deixaram de ser usadas. ‘Ele me enoja’ foi a frase-síntese da atriz Natalie Portman para o episódio.

Agora apliquemos a regra da quarta proporcional a um caso fictício em que um estilista da língua, um bom escritor se refira ao povo de Israel nos mesmos termos em que Monteiro Lobato se referia aos negros, por exemplo, nos textos transcritos pelo jornalista Arnaldo Bloch na página ‘Logo’ de O Globo (2/3/2011). Pergunte-se: o que aconteceria? Haveria escritor, editor ou colunista atestando que não havia racismo nenhum, que os tempos eram outros, que é ridículo buscar cabelo em ovo, que a consciência infantil jamais seria afetada pelas imagens de rebaixamento e que, no fundo, imaginação literária não é imagem em ação?

Temos certeza de que não haveria. Por quê? Pelo simples fato de que a comunidade judaica aprendeu a repelir a infâmia do racismo. Primeiro, ela sempre soube, por sua milenar tradição intelectual, da importância de se ter autoridade semântica sobre si mesmo; segundo, por meio do sofrimento infligido à consciência pela disseminação, realmente virótica, dos estereótipos negativos. O humor judaico conhece a diferença entre as auto-ironias e o discurso da infâmia.

Ora, dirão, os tempos eram outros, até mesmo da pena esclarecida de um Sérgio Buarque de Hollanda partiu em certo momento (1920) um juízo negativo sobre a mestiçagem. Muito antes disso, entretanto, intelectuais brasileiros como Joaquim Nabuco e Rui Barbosa entenderam perfeitamente o papel desempenhado pelos africanos e seus descendentes na formação do povo nacional. Aliás, todos os próceres abolicionistas, claros ou escuros – Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, José do Patrocínio, Luiz Gama e outros – eram atravessados por uma espécie de ‘espírito’ educacional, que não podia comportar juízos ‘lobatianos’ sobre a condição negra.

O abolicionismo era em si mesmo um movimento educacional no sentido amplo da palavra, porque se tratava de preparar as elites dirigentes para o ingresso da nação brasileira no século 20 sob o signo de uma modernidade (de inspiração liberal e européia) incompatível com a escravatura e já muito atrasada frente à conjuntura internacional. Os intelectuais abolicionistas eram educadores coletivos, porque representavam aquilo que Nietzsche chamaria de ‘autoridade imperiosa em matéria de cultura’ (a exemplo de Goethe, Hegel ou Schopenhauer na Alemanha). Por isso, podiam ser implicitamente reconhecidos como ‘instrutores públicos’ ou indicadores da necessidade histórica de se mudar toda uma estrutura anacrônica.

Por outro lado, havia a eugenia, nome da pseudociência surgida em fins do século 19, com o fim de ‘melhorar’ geneticamente a espécie humana, assim como se pode experimentar com animais. Era um anacronismo que arrefeceu nos EUA por volta dos anos 1930, transferindo-se para a Alemanha nazista, onde fez carreira. Além de anacrônico, era um pensamento violento, porque não disfarçava o desejo de morte do Outro considerado geneticamente inaceitável e, por derivação, culturalmente rebaixado pela consciência investida do pior do universalismo europeu. Mesmo deixando de lado o nome próprio, às vezes falando em nome da genética, a eugenia persistiu ao longo do século em escritos de antropólogos, sociólogos, ficcionistas, jornalistas e, pior de tudo, nas falas de professores que os recitavam para platéias em formação.

Recado entendido

Monteiro Lobato está agora em foco precisamente porque era um militante do movimento eugenista, com coragem para dizer o que pensava e sentia. ‘A escrita é um processo indireto de fazer eugenia’, repetia ele, como que deixando aberto o convite, para além do que explicitava em suas cartas, a que se pesquisasse o conteúdo subliminar eugenista em seus textos. Era, reiteramos, racista confesso, sem meias falas. Ignorância é o encobrimento desse dado histórico.

Por que se encobre? Podem ser muitas as respostas, mas simplifiquemos um pouco com a hipótese da existência nas elites brasileiras de um ‘princípio do avestruz’, essa ave que, segundo a mitologia popular, enterra a cabeça na areia para não ver aquilo que teme. Na prática, o struthio camelus é bicho de visão e audição aguçadas, capaz de formidáveis patadas, se ameaçado. Mas o mito lhe atribui esse estranho comportamento, que costuma repercutir na vida real. A mídia, por exemplo, que é intelectual coletivo das classes dirigentes, caixa de ressonância dos fantasmas elitistas, sabe bem a hora de meter a cara no buraco.

Não é um princípio que se aplique a todas as situações espinhosas. Se um economista apresenta a realidade da discriminação em números e com a terminologia de praxe, as pessoas são capazes de assentir com a cabeça, a imprensa escrita é capaz de publicar com destaque a apresentação. A coisa toda pode até incomodar um pouco, mas o economês é discurso de poder, logo, tem vias de trânsito, ainda que levante contradições.

O problema aparece de fato quando o discurso antidiscriminatório tem conotações políticas com rebatimento sobre o plano das relações interpessoais. Aí o bicho pega e comparece o princípio do avestruz: ver o real é assustador. Como ‘ver’ que aquele escritor com que nos embalaram desde a infância e cuja obra resultou naquela série de televisão tão afetuosa e tão vendida no exterior era pior do que o estilista John Galliano, já que não precisava sequer encher a cara ou o nariz para dizer o que pensava? Sobre a mídia ou sobre o cotidiano de cada cidadão, paira o princípio do avestruz como uma espécie de garantia para que não se veja a ignorância própria ou não se veja o tamanho da própria coragem existencial, certamente ínfimo diante da coragem de Lobato que, como frisamos, assinava embaixo da infâmia.

Não se trata, portanto, de censura nem de aplicação do ‘politicamente correto’. Trata-se, sim, de dar nome aos bois, de encarar o real e aprender coletivamente a lidar com os paradoxos, as contradições e as ambigüidades de que também é feito o nosso meio vital, esse ‘mundo da vida’ de que tanto fala o ilustre alemão Jürgen Habermas. Monteiro Lobato e sua literatura fazem parte do mundo da vida nacional.

Mas o Estado-Nação brasileiro ainda não está concluso: deve-se, mais do que nunca, continuar a ler Lobato, apenas, quem sabe, com o cotejo de predecessores como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, José do Patrocínio ou de autores contemporâneos com uma visão mais generosa da espécie humana. Enfim, é preciso recuperar um pouco do espírito de instrução pública que bafejou o Brasil nas lides abolicionistas e republicanas. A mídia – será apenas a televisão? – tem-nos feito esquecer a brasilidade oitocentista, que presidiu ao nascimento da Nação independente, soterrando-nos com lixo cultural reciclado.

Não procede a afirmação de que esse tipo de revisão é coisa de acadêmico. Academicamente, já fui orientador de tese de doutoramento sobre a literatura de Lobato, sem que se levantasse o tópico do racismo. Não eram majoritariamente acadêmicos aqueles que se incomodaram com a camiseta do bloco carnavalesco em que Lobato sambava com uma negra. Pareceu-me gente que entendia do recado: ele poderia dançar fox-trot, jamais sambar, muito menos com uma negra ou mulata.

Mais embaixo

Aqueles que se manifestaram na rua eram membros dessa coorte crescente de cidadãos cada vez mais inspirados pelas lições anti-racistas da comunidade judaica. A ‘pretalhada’ (termo lobatiano) é mesmo ‘inextinguível’ (termo lobatiano) e está em luta pela representação social. Para quem quiser ampliar até a substância a metáfora do avestruz, vale tomar nota de que a carne dessa ave já não é rara em supermercado: enterrou a cabeça, dançou. Ao jornalista-avestruz, congelado na restituição ‘afetuosa’ do passado, vale a advertência cantada por Zeca Pagodinho: ‘Camarão que dorme a onda leva’.

Por isso tudo foi muito interessante a página ‘Logo’ de O Globo. Transcrevendo trechos inequívocos de textos de Lobato em caixa alta, o jornalista Arnaldo Bloch, jovem e esclarecido membro da comunidade judaica do Rio de Janeiro, deu um recado implícito aos profissionais da leviandade: o buraco é mais embaixo. É assim mesmo que se deve entender o tom do recado. Arnaldo, se bem me lembro, foi da turma do saudoso Bussunda na ECO (UFRJ), na época em que dirigi a escola. Saudoso, sim, pois Bussunda, membro daquela mesma comunidade do Arnaldo, era um iconoclasta que contornava saudavelmente a hipocrisia do ‘politicamente correto’.

Saudavelmente? Sim, na contracorrente do princípio do avestruz e longe, muito longe, da infâmia raivosa.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro