Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O psicanalista e o fascismo

Há, de fato, um grave problema neste país. E não se trata do tal apagão aéreo, nem dos filhos de FHC e Renan Calheiros, mas da escalada do processo de fascistização da mídia, tocado especialmente por seus articulistas.

Abro o jornal, e lá está, retoricamente performático, um tal Francisco Daudt, convocado para incitar à loucura coletiva. Sua diatribe é pobre e desinformada, mas extremamente venenosa [ver abaixo]. De repente, um choque: o sujeito é creditado como psicanalista.

Se fosse este um país já radicalmente civilizado, o tal doutor pegaria uma cana ou seria obrigado a passar um ano entre os desfavorecidos, prestando-lhes serviços comunitários. Considerada sua expressa repugnância pelo ‘pobre’, no entanto, a decisão a uma pena de morte equivaleria.

Se houvesse Lei para a imprensa, o doutor ‘freudiano’ responderia por calúnia, injúria e difamação. No entanto, como prevalece no país a farsa da ‘liberdade de expressão’, convertida em ‘liberdade de imputação’, o controlador do divã certamente continuará livre. Afinal, este é o ‘país da impunidade’.

Transferência de ódios

Se o tal, entre uma delinqüência e outra, realmente leu sobre as idéias basilares de seu ofício, deve bem conhecer a Psicologia de massas do fascismo. Conforme Wilhelm Reich, o fascismo não se fortaleceu unicamente por conta do embuste da propaganda política, mas pela identificação de setores da população com os líderes do movimento.

Na Itália e na Alemanha, a adesão à extrema-direita resultou menos da despolitização do povo que da atração exercida pelo discurso fascista. Assim como Arnaldo Jabor e Diogo Mainardi, o dr. Daudt recorre ao expediente da sedução barbárica.

Como no processo de construção do nazismo, o dr. Daudt elege um causador de todas as mazelas da sociedade. Para Hitler, eram fonte de infortúnio os judeus supostamente usurários. Para o psicanalista, é o presidente da República.

Segundo esse paradigma de transferência de ódios, não importa quão subjetivas sejam as razões da insatisfação humana. A eleição de um único culpado oferece alívio imediato.

Sacralização da irracionalidade

Elimina-se, assim, o peso da reflexão e da procura de causas nas profundezas do ‘eu’. A razão de todos os infortúnios reside, pois, no ambiente externo, exposta todos os dias na tela da TV. É apenas um homem baixo, barbado e do povo.

O dr. Daudt não se importa se as investigações mostraram que os pilotos norte-americanos foram os principais responsáveis pelo acidente com o avião da Gol. Muito menos se houve um defeito mecânico na aeronave da TAM. Pouco lhe importa, ainda, a dor de quem perdeu um familiar ou amigo na Avenida Washington Luís. Seu objetivo é comover o leitor político pela estetização do discurso da agressão.

Tomando a oportunidade, o psicanalista utiliza o sacrifício das vítimas para fetichizar uma revanche social. Para ele, aliás, o conceito de humano é flagrantemente seletivo. Os milhões de atendidos pelo Bolsa Família, por exemplo, são apenas esmoleiros. E sua parcela de imposto, reclama, não deveria gerar comida e oportunidade aos subalternos.

Daudt fala empinado, do alto de sua classe, do gabinete, da cadeira de Deus-ouvidor. É daqueles que respondem confusamente à perda histórica da experiência, estimulando a barbárie. Walter Benjamin viu muito desses psicóticos espumantes no entre-guerras, protagonistas da reação confusa da pequena burguesia mesquinha à crise dos valores. No caso presente, é sintomático que a sacralização da irracionalidade seja celebrada por um profissional supostamente encarregado de sanar mentes.

Insatisfação com o fracasso

No jornal dos médios do Brasil, Daudt é sobretudo um clérigo às avessas, receitando ao mundo das avenidas Berrini e Atlântica uma pílula santa de desordem pulsional, de rendição prazerosa à iconoclastia, de indulgência ao que confessa não tolerar o outro, o diferente.

Mais curioso é que Freud tenha fundamentado de um modo essencialmente psicológico a tendência à barbárie. Segundo ele, por intermédio da cultura as pessoas experimentam fracassos, desenvolvendo sentimentos de culpa subjacentes que, não raro, resultam em agressão. Com base nessa percepção, Adorno fundamentou boa parte de suas teorias sobre a barbárie, expressas especialmente em A educação contra a barbárie.

Homem tão complexo, Adorno resumiu com grande simplicidade seu desejo:

‘Com a educação contra a barbárie, no fundo não pretendo nada além de que o último adolescente do campo se envergonhe quando, por exemplo, agride um colega com rudeza ou se comporta de um modo brutal com uma moça.’

Hoje, entretanto, o dr. Daudt não se envergonha de nada. Meio oculto na multidão de apedrejadores, sente-se protegido, quase anônimo, para expor a insatisfação com o próprio fracasso.

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O que ocorreu não foi acidente, foi crime

Francisco Daudt # copyright Folha de S. Paulo, 19/7/2007

Gostaria imensamente de ter minha dor amenizada por uma manchete que estampasse, em letras garrafais, ‘GOVERNO ASSASSINA MAIS DE 200 PESSOAS’. O assassino não é só aquele que enfia a faca, mas o que, sabendo que o crime vai ocorrer, nada faz para impedi-lo. O que ocorreu não pode ser chamado de acidente, vamos dar o nome certo: crime.

Remeto-me ao livro de García Márquez, Crônica de uma morte anunciada. Todos sabiam e ninguém fez nada. E não me refiro a você, leitor, que se consome em sua impotência diante deste e de tantos descalabros que vimos assistindo semanalmente. Ao ponto de a ministra se permitir ao deboche extremo do ‘relaxa e goza’? Será esta sua recomendação aos parentes das novas vítimas? Refiro-me às autoridades (in)competentes, inapetentes de trabalho gestor. Refiro-me ao presidente Lula, que, há quantos meses, ó Senhor, disse em uma de suas bazófias inconseqüentes que queria ‘data e hora para o apagão aéreo acabar’, como se não dispusesse da devida autoridade para tal.

Sinto pena de não ter estado na abertura do PAN, de não ter engrossado aquelas bem merecidas vaias. Talvez o presidente não se importe tanto; afinal, quem viaja de avião não é beneficiário de sua bolsa-esmola, não faz parte do seu particular curral eleitoral cevado com o dinheiro que ele arranca de nós. Devem fazer parte das tais ‘elites’, que é como ele escarnece da classe média que faz (apesar do governo) o país crescer.

Qual de nós escapou do medo de voar desde o desastre da Gol HÁ NOVE MESES? Qual de nós assistiu confortável o jogo de empurra, ‘a culpa é dos controladores’; ‘não, é do Ministério da Defesa’; ‘a mídia também exagera tudo’; ‘é do lobby das empreiteiras que só querem fazer obras inúteis e superfaturadas nos aeroportos’. Qual de nós deixou de ficar perplexo com a falta de ação efetiva para que o problema se resolvesse?

Perdão, acho que a tal falta de ação geral de governo é de tamanho tão extenso e dura tanto tempo que muitos de nós a ela nos acostumamos. Sou psicanalista, e, por dever de ofício, devo escutar o que meus clientes queiram dizer. Pois nunca pensei que fosse pronunciar no consultório uma frase que venho repetindo há algum tempo, depois de que mensalões, valeriodutos, Land-Rovers, dólares na cueca, dossiês fajutos, renans calheiros, criminalidade, insegurança pública, impunidade, pizzas e tudo isso que o leitor já sabe se despejam fétida, diária e gosmentamente sobre nossas cabeças. A tal frase: ‘Não quero falar desse assunto.’ Os pacientes me respondem com alívio, ‘Ufa, eu também não!’ É o desabafo da impotência partilhada. ‘Welcome to Congo’? Talvez seja um insulto ao Congo.

Pois agora quero falar deste assunto. Deram-me a oportunidade de ser menos impotente. Sei que falo por uma enorme quantidade de brasileiros trabalhadores que sustentam essa máquina de (des)governo, muitos mais que os 90 mil do Maracanã, para expressar o nojo e a raiva que esse acúmulo de barbaridades nos provoca.

O governo sairá da inação, da omissão criminosa? Alguém será preso, punido por todas essas coisas? Infelizmente, duvido. Talvez condenem a mim, por ter deixado o coração explodir. Pagarei o preço alegremente, lembrando Graciliano Ramos, que, visitado no cárcere, travou com o amigo o seguinte diálogo: ‘Puxa, Graça, você, aí dentro, de novo?’ ‘E você, o que faz aí fora? Nestes tempos, lugar de homem honesto é na cadeia.’ [Psicanalista e colunista da Revista da Folha]

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Jornalista, São Paulo, SP