Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Com esta saudação iniciamos o nosso programa semanal de televisão transmitido para todo o país todas as terças-feiras há oito anos consecutivos. Esta mesma saudação também serve de abertura, há mais de um ano, para o nosso programa de rádio transmitido diariamente para São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Rio Grande (RS) e Paranatinga (MT).
“Bem-vindos ao Observatório da Imprensa!” Com isso queremos dizer que somos observadores e, ao mesmo tempo, somos a imprensa, somos watchers e também somos media. Nossa idéia como media-watchers é mudar o sistema, a partir dele mesmo, de dentro dele. Se não conseguimos dialogar com a sociedade e não conseguimos ser entendidos por ela, como torná-la sensível às nossas mensagens?
“Bem-vindos ao Observatório da Imprensa” é uma forma de buscar a transparência, uma convocação aos leitores, ouvintes, telespectadores para que assumam o seu papel como cidadãos ativos de uma sociedade democrática.
Nosso site está na web há pouco mais de 10 anos, não tem uma saudação mas tem um moto, um slogan, uma epígrafe: “Você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito”. Usted nunca más leerá un periódico del mismo modo. You’ll never read a newspaper the same way again.
Com esta mensagem tentamos socializar as dúvidas, produzir questionamentos, interromper a passividade. Nosso ceticismo no tocante aos procedimentos dos meios de comunicação não é teórico nem vago. E com este ceticismo, real e cotidiano, tornamos clara a nossa feição e a nossa vocação.
Jornalismo descartável
Nosso Observatório da Imprensa é um fórum de debates sobre a jornalismo e simultaneamente um veículo jornalístico. Mas é um veículo jornalístico coerente com os princípios que debate. De nada adiantaria uma pregação em torno da excelência em jornalismo se não fossemos capazes de buscar esta excelência em nosso dia-a-dia.
Esta foi uma decisão estratégica anterior à criação do Observatório da Imprensa. E aqui tomo a liberdade de contar um pouco da nossa história imaginando que algumas de nossas experiências possam servir tanto como modelo como opção a ser evitada.
Nascemos na Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp. Universidade pública, moderna e modelar, criada há exatamente 40 anos. Em 1994, era seu reitor o professor Carlos Vogt. A Unicamp jamais se interessou em criar um curso de graduação em jornalismo ou comunicação, mas sempre esteve atenta – e muito atenta – à área da especialização e pós-graduação.
A imprensa brasileira atravessava um momento crucial. Forçara a renúncia do presidente da República, Fernando Collor de Mello, e inebriada com a façanha procurava ampliar o seu poder através de um salto na circulação. Começava naquele momento o jornalismo de resultados, a busca de números e quantidades.
Os diretores de Redação eram estimulados a estudar marketing, os homens de marketing eram incentivados a participar de decisões jornalísticas e, não obstante a vitória política obtida com a renúncia do presidente da República, convocaram-se consultores internacionais para tornar a imprensa mais “leve” e, paradoxalmente, menos política.
Menos de 10 anos depois da redemocratização do país, as maiores empresas jornalísticas esqueciam suas divergências e conjugavam-se no sentido de apagar os vestígios do jornalismo de qualidade que se procurou praticar durante os anos 1960 e 70. Foi a época do paradigma USA Today, das grandes promoções, dos brindes colecionáveis, do jornalismo descartável. A busca pelo leitor jovem criou o mito de que apenas os jornalistas jovens saberiam agradá-lo. E estes jovens jornalistas eram fabricados em série por escolas de jornalismo desaparelhadas em matéria de instalações e de recursos humanos.
Antídoto para a arrogância
Neste panorama delirante e ao mesmo tempo constrangedor, a Unicamp criou o Labjor – Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo para refletir e atuar em três esferas muito definidas: 1) junto ao mercado profissional, por meio de cursos para professores de jornalismo e cursos de especialização; 2) junto às empresas jornalísticas, num esforço para barrar a influência das consultorias internacionais e evitar que o jornalismo brasileiro perdesse sua identidade; e, 3) junto à sociedade, já que ela, como destinatária do processo jornalístico, precisava ser estimulada a aumentar os seus padrões de exigência.
Vou poupá-los de um relato circunstanciado a respeito de nossas atividades tanto na esfera profissional como na empresarial. Posso dizer apenas que foram razoáveis. Mas percebemos que a esfera pública era prioritária.
A reversão do processo jornalístico só poderia dar-se a partir de uma reversão na atitude do próprio leitor, ouvinte ou telespectador. No lugar de uma entidade passiva, a reboque do marketing e das consultorias, o público deveria transformar-se rapidamente num elemento ativo. Ou pelo menos consciente.
Começamos a procurar modelos de atuação social. Não havia recursos para criar uma revista ou um jornal. Organizar debates era uma opção demorada. Mas as novas tecnologias de informação criavam, naquele exato momento, fascinantes alternativas.
Nosso companheiro Mauro Malin, que já trabalhava com internet, sugeriu aproveitar o seu potencial. E assim, em 1996, quando a internet recém-iniciava no Brasil a sua vertiginosa ascensão, nós também nos juntamos a ela.
Pedimos emprestado o nome Observatório da Imprensa a uma entidade portuguesa de cuja fundação eu havia participado dois anos antes, e que por sua vez inspirara-se na entidade francesa Observatoire de la Presse.
O conceito de observação atendia plenamente ao nosso projeto de transparência e ao nosso estilo de atuar. Acreditamos que a simples observação de um fenômeno é uma forma de intervenção neste fenômeno. O monitoramento dos meios de comunicação deve funcionar de forma sutil, persuasória. A simples existência de um Observatório com credibilidade é capaz de desenvolver nas redações uma sensibilidade para a crítica, antídoto para a usual arrogância e prepotência.
O primeiro editor
Começamos com uma página sem periodicidade. Depois, repetindo o que aconteceu com a própria história da imprensa, descobrimos que a periodicidade é crucial. Por falta de recursos optamos por um ritmo mais lento, quinzenal. Com o desenvolvimento dos equipamentos, tecnologias e, sobretudo, com a criação de portais de notícias na web percebemos que sem atualidade seria impossível acompanhar criticamente o desempenho dos meios de comunicação.
Em 1998, dois anos depois de estabelecidos na internet, uma surpresa. Em geral, os veículos criavam os seus sites. Aqui deu-se o contrário: o site foi estimulado a produzir um programa de televisão. E isso só poderia acontecer numa televisão pública capaz de oferecer a mesma liberdade oferecida pela web. O nosso programa de rádio também não poderia ser transmitido numa rede comercial.
Ainda não conseguimos uma interatividade completa entre nosso site e os nossos programas de televisão e de rádio. Mas ambos podem ser acessados através da web. E não está longe o dia em que a participação do público será imediata, ao vivo, live, en directo, com som e imagem. Não somos escravos da tecnologia, ao contrário: soubemos dominá-la em benefício do nosso projeto e assim será sempre. Gutenberg inventou os tipos móveis, mas o livro como objeto existia antes da tipografia. E foi Aldus Manuzio, poucos anos depois, que se converteu no primeiro editor moderno de livros. Num projeto humanístico a tecnologia é acessória. Queremos novas tecnologias, mas não permitiremos que elas condicionem nossos valores e projetos.
Identidade ressaltada
Não sei se a história do Observatório da Imprensa é uma história de sucesso, mas na avaliação da primeira década de nossa existência não é difícil identificar alguns fatores que explicam a nossa sobrevivência e mostram o caminho que nos conduziu até esta Redação de Vidro.
** Estamos comprometidos com a crítica, mas recusamos a fabricação de vilões.
** As empresas jornalísticas merecem reparos, mas também os jornalistas merecem reparos, sobretudo quando obedecem de forma acrítica as imposições do mercado ou quando sentem-se no direito de impingir suas posições políticas ou ideológicas.
** Os governos, tanto de esquerda como os de direita, sempre merecem reparos porque é da natureza de qualquer poder o impulso para controlar o contrapoder. A imprensa é um poder e o único contrapoder que consideramos legítimo é a observação da imprensa. Regulamentações são necessárias nos meios eletrônicos, já que são concessões públicas e comprometidas com o bem-estar da sociedade. Incentivos são bem-vindos desde que oferecidos a todos, sem distinção.
** Os sindicatos, as federações profissionais e o espírito corporativo também merecem reparos, sobretudo quando esquecem seus compromissos com a isenção e o equilíbrio. Respeitamos os jornalistas no exercício de atividades paralelas como as assessorias de imprensa, mas temos consciência de que estas assessorias geralmente estão em situações antijornalísticas.
** Assistimos com satisfação ao crescimento das empresas jornalísticas, mas estamos seriamente preocupados com a concentração dos veículos em mãos de poucos grupos. Tanto assim que recentemente acionamos a instância máxima do Ministério Público, a Procuradoria Geral da República, e chamamos a sua atenção para uma ilegalidade que compromete as bases do Estado de Direito: grande parte dos parlamentares brasileiros são concessionários de rádio e TV. São fiscais e beneficiários. Isso é inaceitável. Como observadores não podemos deixar de identificar uma disfunção que compromete a estrutura e natureza da comunicação no país.
** Acreditamos que a imprensa e a mídia fazem parte da indústria cultural, mas recusamos a tendência dominante nos grandes veículos comunicação de confundir jornalismo com espetáculo, cultura com show business.
** Temos clara consciência de que como jornalistas somos herdeiros da literatura, por isso defendemos todos os movimentos em favor do jornalismo narrativo, do jornalismo literário, do new journalism ou old journalism. Somos artífices das palavras e por isso temos que zelar por elas. Já vimos como fotografias às vezes podem ser adulteradas, mas acreditamos que as palavras são insubornáveis, ferramentas básicas na busca da verdade.
** Acreditamos na publicidade: sem anúncios não haveria uma imprensa livre. Mas nosso Observatório recusa mensagens de governos, grupos de interesses ou que contenham incentivos ao uso de drogas, mesmo as lícitas. Empresas públicas ou privadas são bem-vindas desde que suas mensagens ofereçam apenas os respectivos serviços ou produtos. Favorecemos, sobretudo, fundações e instituições do Terceiro Setor, nacionais ou internacionais, desde que comprometidas ostensivamente com a promoção do interesse público. Neste sentido faço questão de oferecer uma saudação especial à Fundação Ford aqui representada pela Dra. Ana Toni, cujas doações tornaram possíveis alguns de nossos projetos mais queridos, inclusive o evento que hoje nos reúne.
** Temos consciência de que a legitimidade do Observatório da Imprensa está sendo construída todos os dias. Como indivíduos e como entidade, pagamos um preço bastante alto por nossa independência e pelo nosso inconformismo. Temos sido boicotados, atacados e marginalizados pela grande imprensa e às vezes também pela pequena imprensa partidária. Os gatekeepers prefeririam que não existíssemos. Uma única vez sofremos um processo judicial e não nos importaríamos que fossem muitos. Esse é um ônus orgânico, decorrente do compromisso de abrigar todas as idéias desde que digam respeito à mídia, respeitem a civilidade e seus autores sejam claramente identificados.
Talvez eu tenha detalhado demais nosso ideário. Foi intencional. Estamos inaugurando neste momento um projeto denominado “Redações de Vidro”. Não pretendemos criar uma entidade, queremos apenas ressaltar uma identidade. Esta identidade já existe a partir da proximidade geográfica, histórica e cultural. Mas no momento em que entramos juntos nesta Redação de Vidro ficamos mais iguais.
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa. Bem-vindos à transparência.