Em 1988, eleita prefeita de São Paulo, a professora Luiza Erundina nomeou Paulo Freire secretário da Educação do município. Antes de assumir, o consagrado educador disse mais ou menos isto: “A criança terá uma escola na qual a sua linguagem seja respeitada. (…) Uma escola em que a criança aprenda a sintaxe dominante, mas sem desprezo pela sua. (…) Precisamos respeitar a sua sintaxe mostrando que sua linguagem é bonita e gostosa, às vezes é mais bonita que a minha. E, mostrando tudo isso, dizer a ela: `Mas para tua própria vida tu precisas dizer a gente chegou em vez de dizer a gente cheguemos´. Isto é diferente, a abordagem é diferente. É assim que queremos trabalhar, com abertura, mas dizendo a verdade.”
A declaração de Freire causou barulho semelhante ao que causou (e ainda causa) o livro Por uma Vida Melhor, em que se mostram fatos relativos às variações linguísticas. Nele, dá-se como exemplo de norma popular a frase “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”. Dado o exemplo, explica-se isto: “O fato de haver a palavra os (plural) indica que se trata de mais de um livro. Na variedade popular, basta que esse primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente.” O livro prossegue: “Reescrevendo a frase no padrão culto da língua, teremos: `Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados´. Você pode estar se perguntando: `Mas eu posso falar `os livro´? Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico.”
Não faltam opiniões fortes dos dois lados
Há uma certa contradição na explicação, já que na frase popular a forma verbal (“estão”) está no plural. Nessa variedade, o que se usa é “tá”. O caso abordado no livro é tecnicamente chamado de “plural redundante”. Tradução: na forma culta (“Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados”), todos os elementos que se referem a “livros” (núcleo do sujeito) estão no plural (os, ilustrados, interessantes, estão, emprestados). É assim que funciona a norma culta do espanhol, do português, do italiano e do francês, por exemplo. Em francês, o plural redundante se dá essencialmente na escrita; na fala, singular e plural muitas vezes se igualam. Em inglês, pluraliza-se o substantivo; o artigo, o possessivo e o adjetivo são fixos (na escrita e na fala). Quanto ao verbo, a terceira do singular do presente é diferente das demais pessoas em 99,99% dos casos; no pretérito e no futuro, há apenas uma forma para todas as pessoas.
O fato é que a ausência do plural redundante não se restringe à variedade popular do português do Brasil. Também é fato que, apesar de algumas afirmações pueris (“Mas eu posso falar `os livro´? Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico”), em nenhum momento o livro nega a existência da norma culta, como também não se nega a mostrá-la e ensiná-la. Há vários exercícios em que se pede a passagem da norma popular para a culta.
Definitivamente, não se pode dizer que o livro “ensina errado”. O cerne da questão é outro. O que expliquei sobre o exemplo do livro é assunto da linguística, que, grosso modo, pode ser definida como “estudo da linguagem e dos princípios gerais de funcionamento e evolução das línguas” (Aulete). A linguística não discute como deve ser; discute como é, como funciona. O que parece cabível discutir é se princípios de linguística devem ser abordados num livro que não se destina a alunos de Letras, em que a linguística é disciplina essencial. Esse é o verdadeiro debate. Não faltam opiniões fortes dos dois lados. É isso.