Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O que falta avançar

O advento dos meios de comunicação de massa, com a televisão à frente, acentuaram o pendor dos políticos pelas artes do espetáculo e o fascínio dos holofotes. A preocupação com o conteúdo da mensagem saiu de cena e entrou – aparentemente para ficar – em seu lugar a preocupação com a imagem, com o superficial, com o acessório.


Trocou-se o permanente pelo provisório, o prazer de expor bons argumentos – com início, desenvolvimento e conclusão – por amontoado de frases de efeito, vazias de sentidos, esvaziadas de significado. A soberba parece crescer ante o brilho do palco televisivo e os atores políticos parecem descrentes do aforismo cunhado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) quando asseverou: ‘Não te estufes: a menor picada te esvaziaria’.


É a sociedade do espetáculo. E se é, há que se mencionar Guy Debord (1931-1994), que em 1967 publicou livro titulado com esta frase. Foi durante muitos anos um cult dentre a ala mais engajada do Maio de 1968, em Paris.


O ‘espetáculo’ de que fala Debord vai muito além da onipresença dos meios de comunicação de massa, que representam somente o seu aspecto mais visível e mais superficial. É notável que em 221 brilhantes teses de concisão aforística e com inúmeras alusões a autores conhecidos, Debord explica que o espetáculo é uma forma de sociedade em que a vida real é pobre e fragmentária, e os indivíduos são obrigados a contemplar e a consumir passivamente as imagens de tudo o que lhes falta em sua existência real.


Iniciativa popular


Debord nos incita a considerar a realidade como uma imagem; a unidade que falta à vida recupera-se no plano da imagem. Enquanto a primeira fase do domínio da economia sobre a vida caracterizava-se pela notória degradação do ‘ser’ em ‘ter’, no espetáculo chegou-se ao reinado soberano do ‘aparecer’. As relações entre os homens já não são mediadas apenas pelas coisas, como no fetichismo da mercadoria de que Karl Marx (1818-1883) desenvolveu, mas diretamente pelas imagens.


Estamos fazendo o último percurso da atual corrida eleitoral 2010. E nunca o termo ‘corrida’ tão bem empregado como agora: corrida demarcada por pesquisas de opinião, pontuada por não-fatos, estimulada por escândalos fabricados para serem noticiados com parcimônia, aos poucos, a conta-gotas.


Nietzsche foi também, como de hábito, certeiro ao afirmar que ‘homens de natureza vivaz mentem só por um instante: logo em seguida eles mentem para si mesmos e ficam convencidos e se sentem honestos’. A veracidade da sentença apresenta-se de corpo inteiro na propaganda política obrigatória mostrada na tevê. Um trata de imputar a outro o que ele precisamente está fazendo. E faz isso sem qualquer pudor, sem o mínimo arquear de sobrancelha. É que já estão na fase final do brocado: convencidos da mentira deleitam-se com uma pretensa aura de honestidade moral e intelectual.


Nietzsche escreveu que ‘as grandes revoluções vêm com pés de pombos’. Passamos décadas a malhar com ferro frio e nada de obtermos marcas. Cansamos que ouvir que a classe política está sempre indo de mal a pior e que nada poderia ser feito, já que a política costumava exercer atração fatal sobre pessoas ambiciosas, inescrupulosas, charlatães em geral e com certo pendor para o enriquecimento a qualquer custo. O patrimonialismo parece umbilicalmente ligado à classe política e muitos são os casos em que sobrenomes de políticos momentaneamente renomados passaram a ser usados como sinônimos de roubo e de corrupção.


E se existe um signo que no pleito atual desponta sobre os demais em grau de luminosidade e de esplendor é o advento da salutar Lei da Ficha Limpa. O objetivo da lei é ecoar o elevado grau de insatisfação e decepção que a sociedade brasileira reserva à classe política. O projeto fornece arcabouço jurídico apto a impedir que políticos com condenação na Justiça possam concorrer às eleições. Mas para chegar a ela foram necessárias nada menos que o conjunto de 1.900.000 assinaturas de populares, uma vez que veio a existir graças a um bem sucedido projeto de lei de iniciativa popular, um dos bons instrumentos oferecidos pela Constituição de 1988.


Vazio de conteúdo


Não se pode dizer que houve morosidade em sua tramitação. Muito ao contrário. O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados no dia 5 de maio de 2010 e também foi aprovado no Senado Federal no dia 19 de maio de 2010, por votação unânime. Foi sancionado pelo presidente da República e transformando-se na Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010.


E já começaram a surtir seus saudáveis efeitos nesta campanha de 2010: até o momento, o Ceará é o estado com o maior número de candidatos barrados pela Lei da Ficha Limpa, são 29. Depois, vem Rondônia, com 24, Minas Gerais,16; Pará, 12 e Paraíba,12. Logo atrás aparecem Rio de Janeiro, 11; Acre, 10; São Paulo, 8 e Alagoas, 7.


Os paulistas foram responsáveis pelo maior número de candidatos impugnados: 60. O número é justificado especialmente pela quantidade de candidaturas – mais de 3 mil. Espírito Santo, Goiás e Paraná têm seis candidatos barrados cada. Já os tribunais de Mato Grosso, Piauí e Rio Grande do Sul negaram, individualmente, o registro de cinco candidaturas.


Encerram a lista Mato Grosso do Sul,4; Santa Catarina, 4; Amapá, 3; Bahia, 3; Distrito Federal, 3; Pernambuco, 3; Tocantins, 3 e Sergipe, 2. Dentre estas lideranças impugnadas destacam-se políticos profissionais como Paulo Maluf, Anthony Garotinho, Jader Barbalho e Joaquim Roriz.


Não seria chegado o momento de a sociedade utilizar a bem sucedida experiência com a aprovação do Ficha Limpa para começar outro projeto de lei visando que sejam acessíveis a todos os brasileiros os sigilos fiscais de todos aqueles que ocuparam o primeiro escalão do governo federal? Tal aprovação esvaziaria por completo os escândalos – em sua maioria absolutamente falsos – tão bem servidos pela grande imprensa e evitaria que a campanha se afastasse de seu curso normal, que é o de apresentação de ideias e de programas de governo para avaliação da massa de eleitores.


O único óbice disso seria que então a grande imprensa teria que cavar mais fundo em outras cercanias, mas, certamente, seria um ganho real para a cidadania, já que ficaríamos sabedores do patrimônio de nossas autoridades e qual a variação patrimonial verificada após sua passagem pelo serviço público federal, estadual e municipal.


Vejamos o que acontece agora: a cada dia temos um grande jornal publicando um detalhe a mais sobre a quebra de sigilos fiscais, informando tudo menos a natureza do que deixou de ser protegido pela Receita Federal. Ou seja, sabemos apenas da embalagem com que o escândalo é literalmente embrulhado pela imprensa e nada de seu conteúdo. Não soa exótico, esquisito, estranho?


Ciranda combinada


Empunhando estas bandeiras moralizadoras da atividade política poderíamos avançar um pouco mais: colocar em movimento projeto de lei de iniciativa popular visando proibir que autoridades governamentais, bem como seus familiares em primeiro e segundo graus, exerçam atividade profissional de assessoramento político, econômico e financeiro a empresas privadas. Seria outro oportuno freio de arrumação em uma área habitada por sombras e trevas, independentemente de que cor partidária esteja no Poder.


Como vemos, a Lei da Ficha Limpa não pode ser vista como um fim em si mesma e sim como a abertura de uma trilha nos caminhos da cidadania brasileira, uma senda que blinde nossa classe dirigente da tentação patrimonialista, dos desvios éticos e da corrupção. De quebra, estaríamos enviando potentes sinais aos profissionais da imprensa para que façam a necessária cobertura dos pleitos eleitorais dentro dos preceitos básicos do bom jornalismo: busca da verdade dos fatos, análises de programas de candidatos, tratamento equânime aos demais postulantes a cargos majoritários, espaço para o contraditório, dentre outros.


Exatamente o contrário do que temos agora: uma imprensa partidarizada até à medula e com mais interesse no jogo político que os próprios candidatos. É o jogo combinado do ‘eu monto o escândalo, você publica o editorial e escala seu principal colunista para repercutir e vocês de tevê abastecem os telejornais com aspas de fulano, fulaninho e sicraninho, está bom assim?’


Um jogo em que a sociedade só tende a perder de goleada. Antes tarde do que nunca é o momento de a própria imprensa criar a sua própria lei: a Lei da Imprensa Limpa.

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter