Jornalismo diário é uma arte complexa. Arte, porque não há ciência no seu fazer, em que pese a técnica e o rigor da apuração dos fatos; complexo, porque o simples é enganoso: ainda que a edição de hoje sirva, como se diz, para embrulhar o peixe de amanhã, é forçoso que a narrativa se constitua em processo um tanto quanto caótico, mas de notável congruência e racionalidade, nem sempre percebidas. Por isso, há sofisticação: um jornal diário não tem nada de perecível. É, antes, acúmulo; conjuntura que se transforma em história.
O reportariado é a mais importante peça da engrenagem do jornal; luta para dar conta da “jornada”, colocar de pé a edição ajustada com os fatos do dia – na verdade, com os fatos de ontem, em se tratando do impresso. Mas, na loucura das horas, na pressão das pautas e dos deadlines, perde-se o fio da meada que alinhava o processo político e costura a história. Resgatar o sentido deveria ser tarefa dos articulistas. Alguns o fazem; muitos, porém, perdem-se em platitudes, juízos de valor, conselhos e discursos arrebatados; constroem a crônica de um opinionismo moral acima de tudo e todos.
Dar sentido aos fatos
Para quem quer formar a sua opinião, têm enorme serventia. Já para quem, porém, prefere o exercício do espírito crítico e deseja sistematizar e compreender a sequência dos fatos, ao longo do tempo, são menos úteis. Esse tipo de raro leitor, nesta modernidade líquida, fica por sua própria conta: recorre aos cadernos semanais, à contribuições de colaboradores; reúne dados e impressões, coleciona fragmentos com o objetivo de dar sentido ao todo.
Na era da internet, os jornais impressos seriam mais úteis se colaborassem mais com esse esforço: ter por missão compreender e explicar os fatos, mais do que relatar o que já vimos nos sites (dos próprios jornais, inclusive) e nos telejornais ao longo da programação, além do rádio, é claro. Ajudar a pensar, processar, e, quem sabe buscar alternativas. Estabelecer como uma ágora do debate nacional.
Mas a cada dia me pergunto se foi meu café ou os jornais que ficaram mais curtos; consumo-os num instante e sinto-me mal alimentado: consumi gorduras de mais, vitaminas de menos. Para evitar isto, busco me ater aos editoriais, aos artigos; descobrir “fontes” escondidas nas matérias: qual seu ponto de vista? Consumo minha última xícara preocupado com o que reter daquilo tudo; com o sentido de unidade e o extrato que servirá para juntar ao processo, ao devir.
O que mais se poderia ver?
Tudo bem. Faz parte da minha profissão, dos vícios da minha formação. Ainda assim, reflito: neste ano de eleições municipais, para o que olham os jornais e o que poderíamos ver?
Claro que a resposta para esta indagação depende, antes de tudo, da natureza e dos interesses de cada veículo. Cada publicação possui um ethos e interesses que definirão sua visão de mundo e a lente com que amplificará os fatos. Cada caso será sempre um caso distinto e difícil de generalizar; a imprensa – burguesa (sic)ou combativa (sic)–, em qualquer generalização apressada que se lhe queira fazer, sempre obedecerá a nuances.
Mas, à parte disto, busquemos, antes de tudo, a síntese do noticiário. Basta folhear as páginas dos cadernos de política: o ex-presidente Lula vai ao Programa do Ratinho, é recebido e fotografado ao lado de Paulo Maluf nos jardins da mansão do ex-prefeito outrora demonizado pelo PT; o PSB rompe com o PT em três importantes capitais, Eduardo Campos se autonomiza; pesquisas apontam José Serra com 31% das intenções de voto (Datafolha) o que o faz, imediatamente, favorito em São Paulo. Fernando Haddad (o candidato por quem Lula abraçou Maluf) expressa minguados 6%; a presidente Dilma afirma que não participará das campanhas eleitorais deste ano…
Tudo isso é notícia. Mas, qual o sentido disso? Há unidade, síntese, possível? Qual é o “jogo” que precisamos compreender?
E antes de tudo, faz-se necessário compor o sentido de “arena política”; um coliseu em que vários gladiadores combatem lutas dependentes e simultâneas, ainda que aparentemente distintas. Qual a relação das escolhas de Lula – de Haddad à aliança com Maluf – com as derrotas que sofreu na definição das presidências da Câmara dos Deputados e disto tudo com a reeleição de Dilma, em 2014?
Qual PT está no poder?
Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que partidos políticos só raramente são agrupamentos coesos, unitários, vinculados a um só projeto. Na maioria das vezes, são campos de disputas (internas), onde “companheiros” de legenda são postulantes ao mesmo poder, num mesmo espaço político. Para demarcar alguns exemplos: Pompeu e César, Danton e Robespierre, Brizola e Jango, Ulysses e Tancredo, FHC e Covas, Serra e Tasso, Hillary e Obama, Dirceu e Palocci.
Pelo menos até aqui, Lula e Dilma tendem à complementaridade. Parecem reunidos em torno do “lulismo” – ainda não se pode falar em “dilmismo”. Seus antagonistas internos estão na máquina partidária, na burocracia interna que, desde 2003, não logrou maior espaço e influência no governo federal, ocupando cargos basicamente periféricos. Ora, o PT não está no poder? Basicamente, não. Guido Mantega, Miriam Belchior, Gilberto Carvalho, Alexandre Padilha, Ideli Salvatti, Gleisi Hoffmann e Paulo Bernardo, por exemplo, pertencem, antes, ao grupo formado no interior do primeiro governo Lula do que propriamente à máquina petista – é também o caso de Fernando Haddad. Aloísio Mercadante identifica-se mais consigo próprio e José Eduardo Cardozo nunca contou com a simpatia da burocracia interna do PT.
Bancada preferiu Maia a Vaccarezza
O fato é que nem a burocracia do partido, nem o corporativismo das bancadas da Câmara e do Senado tiveram vida fácil ao longo dos governos de Lula e Dilma. Entre a eleição e a posse da presidente, esses dois grupos esboçaram reação e, supreendentemente, conquistaram importantes posições de “trincheira”, digamos assim. Lula e Dilma preferiam Cândido Vaccarezza como operador do Executivo na presidência da Câmara. A bancada, porém, lhes deu Marco Maia, como que sinalizando o contrário: um operador do interesses do Legislativo, controlando a pauta de interesse do governo. Não à toa, Maia é hoje fonte de problemas.
Na inesperada sucessão de José Eduardo Dutra, Lula e Dilma manifestavam preferência por Humberto Costa – outro oriundo do governo Lula – na presidência do PT. O campo majoritário do partido, porém, impôs Rui Falcão, muito mais vinculado à máquina e aos caciques do PT do que identificado com o governo. Um representante do partido, apto a endurecer o jogo, na defesa dos interesses do partido. O governo ficaria em segundo plano.
Ver 2012 à luz de 2014
O terceiro round dessa disputa seria São Paulo. Dirigir a campanha municipal da capital implicaria visibilidade, recursos e poder. Vencer a eleição, então, decuplicaria isso tudo. De posse da PMSP, a máquina petista aumentaria sua força, assumiria outro status e possivelmente conseguiria muito mais espaço nas definições de 2014, talvez no governo de 2015 a 2018.
Ora, não teriam essas derrotas e esse risco levado Lula a preferir um nome novo em São Paulo, menos comprometido com o PT paulista do que Marta Suplicy, desde sempre hegemonizada por Rui Falcão e a rapaziada do PT paulistano? Forçar a mão na escolha de Haddad não indicaria evitar que essa parcela do PT assumisse prejudicial espaço nos planos de Lula e Dilma para 2014?
Pode ser que sim, também pode ser que não. Especulação à parte, o fato é que se non è vero, è bene trovato. É uma hipótese explicativa capaz de dar sentido ao conjunto de ações só aparentemente desordenadas de Lula.Capaz também de explicar, em parte, o distanciamento do PSB do PT e a autonomização de Eduardo Campos. Note-se que, em São Paulo, trincheira da batalha de Lula, o PSB ficou com o PT. Nas demais capitais, onde o partido se mostrava indócil à política de alianças de Lula, Campos se liberou a liberou o PSB.
Seria isso mesmo? O fato é que a apuração de bastidores, conflitos internos, projetos em confronto, o jogo da política para além dos fatos cotidianos conhecidos estão ausentes dos jornais. Não se amarra o presente ao processo e nem este aos reais interesses dos atores políticos, seus projetos e suas alternativas no futuro; não se vislumbram esses interesses numa perspectiva de mais longo prazo.
Se os jornais não buscam esse tipo de apuração, os cafés da manhã tornam-se muito mais sensaborões, repletos de carboidratos de queima rapidíssima. Proteínas que deem mais consistência e elasticidade ao organismo são também fundamentais. Os leitores carecem de mais análise e informação de maior profundidade; precisamos reforçar nosso café da manhã.
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[Carlos Meloé cientista político, professor do Insper e autor de Collor, o ator e suas circunstâncias, 2007]