Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O que pode e o que não

Quando surgiu, em 1998, a lei de direitos autorais norte-americana Digital Millenium Copyright Act (DMCA) era uma tentativa legal de tentar barrar o compartilhamento ilegal de arquivos que crescia com a internet. Com o tempo, a legislação foi se tornando cada vez mais dura. Permitia, por exemplo, que a indústria tentasse reaver o controle de filmes, músicas e softwares com travas digitais, criminalizando todo aquele que tentasse se livrar delas. A Eletronic Frontier Foundation, uma das principais organizações de defesa dos internautas, chegou a afirmar que as regras impediam a livre expressão e a inovação no meio digital.

Quando foi instituída, porém, a lei previa revisões a cada três anos, e a que foi feita na semana passada surpreendeu a todos por torná-la bem mais flexível. Será que até as regras norte-americanas se tornariam mais permissivas com a web? Com a mudança, não é mais ilegal fazer o desbloqueio do seu iPhone para fugir do ambiente controlado pela Apple, nem quebrar a proteção contra cópias de DVDs ou games, em alguns casos. Da mesma forma, não é mais proibido instalar programas que permitam que você use seu celular com uma operadora diferente ou usar pedaços de outras obras para fazer remixes. Notórios desequilíbrios foram corrigidos. Não era permitido, até então, que cegos usassem a leitura em voz alta de e-books em aparelhos como o Kindle.

Foi considerado um grande avanço por muitos. Mas, para Samuel Barichello, coordenador-geral de regulação em direitos autorais do Ministério da Cultura (MinC), essas mudanças todas não passam de um mero retorno ao conceito de ‘uso justo’ que se tinha antes da internet e das tentativas de repressão a ela. ‘Se faz um ato que não significa trazer algum prejuízo para o autor, o cidadão pode usar a obra como quiser. Isso é um uso justo’, explica. Pouco a pouco, o que já valia para o offline também passa a valer para o online.

Segundo ele, a revisão da Lei de Direitos Autorais (LDA) brasileira (lei 9.610, de 1998), proposta pelo MinC, já nasceria mais moderna, montando regras que poderiam valer para os dois ambientes. ‘A nossa ideia é que a lei possa valer na internet e fora dela. Nos Estados Unidos, eles tentaram criar normas específicas para a web. Podemos ver, com todas essas revisões, que eles não cumpriram o que desejavam’, diz.

A nova lei brasileira criaria um espaço para o uso não-comercial de obras protegidas e daria mais flexibilidade para os autores discutirem prazos e condições de cessão de direitos, além de permitir remixes e cópias para uso privado. O ponto mais polêmico é que ela criaria um Instituto Nacional de Direito Autoral, controlado pelo Estado, que seria responsável por regular a atuação das entidades privadas.

Desde o início da consulta pública, em 14 de junho, a página recebeu mais de 2 mil contribuições de internautas, e a estimativa é que esse número deve pelo menos dobrar com a prorrogação da consulta até 31 de agosto. O MinC estima que, até agora, 36% das manifestações dos internautas concordam com o texto colocado em consulta pública no site cultura.gov.br/consultadireitoautoral, outros 36% fazem contribuições à redação original e 28% são de discordância.

Coordenador de uma pesquisa de três anos sobre o papel da pirataria em economias emergentes como as do Brasil, Rússia e África do Sul, o norte-americano Joe Karaganis, chefe do instituto de pesquisa Social Science Research Center, acredita que tanto a experiência brasileira quanto a norte-americana fazem parte de uma tendência de flexibilização das legislações de copyright no mundo. O resultado parcial do estudo, que ainda está em curso, foi apresentado na semana passada no Rio de Janeiro, em um evento da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto Overmundo.

‘Percebemos, na pesquisa, que esse endurecimento da lei que vimos como reação à web pode até complicar a vida dos piratas em algumas áreas, mas praticamente não surte nenhum efeito em um contexto maior’, conclui.

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‘O povo do copyleft quer me silenciar’

No Brasil, nem todo mundo acha que a lei precisa mudar. O Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), responsável por coletar e repassar os direitos autorais de execuções musicais, é radicalmente contra a reforma propostapelo MinC. O órgão acredita que o projeto 9.610, aprovado em 1998 e que nunca passou por nenhuma revisão, dá conta da web, apesar de nada falar sobre compartilhamento de arquivos, uso privado ou remix.

‘Agora que o anteprojeto foi posto em discussão na internet, fomos obrigados a contribuir com ele’, diz Glória Braga, superintendente-executiva do Ecad, esclarecendo que a entidade começou a postar suas opiniões no site da consulta pública. Antes, ao lado da Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus),o órgão lutava para que a proposta nem fosse apresentada.

Glória cita pelo menos um ponto positivo no anteprojeto. ‘Não havia na lei o tempo de prescrição do direito autoral, o tempo para o autor reclamar seus direitos, e isso vai mudar. Isso é um avanço’, diz. Todo o resto, incluindo a livre utilização de pequenos trechos em remixes, o Ecad rejeita.

Nos EUA, a briga parece a mesma. Representante de compositores, autores e editores, a Ascap (American Society of Composers, Authors and Publishers) mandou uma carta para seus filiados, pedindo que eles ajudassem a combater oponentes como o Creative Commons, que estaria trabalhando para acabar com o copyright. ‘O movimento contra o copyright, o copyleft, quer me calar’, acusou o presidente da entidade, Paul Williams.

Já o advogado Lawrence Lessig, criador do Creative Commons e defensor de mudanças na legislação de copyright, escreveu um texto acusando o órgão de fazer lobby contra o movimento e contra reformas. (Rafael Cabral)