Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O que uma charge carrega

Charge, em francês, é carga. Designa a ilustração que carrega nas tintas e nos traços, com o objetivo de ridicularizar alguém ou caricaturizar determinada situação. Carregar (carga de cavalaria) pode significar investida impetuosa. Ou surrar. Carga pode ser o conteúdo pronto a ser disparado pela arma de fogo. No futebol, carga é entrada faltosa com o intuito de derrubar o jogador adversário.

As charges, boas ou más, mudas ou com legendas, provocam o riso. Riso maldoso ou embaraçado, saudável ou zombeteiro. Charge pesada pode prejudicar reputações. Mas a charge, por natureza, pouco respeita a imagem alheia, as intenções e esforços alheios. Figuras públicas estão expostas e os chargistas estão a postos. Um deles desenha Lula revoltado, pegando o telefone: ‘Pra mim chega! Eu vou acabar com a fome agora! Dona Maria, traz um pedaço de bolo e um cafezinho pra mim…’

Chargista é humorista, e o humor gosta de ultrapassar os limites. E daí a raiva que provoca. Contra charges não há argumentos. Ou rimos, ou partimos para a briga. O chargista perde os dentes mas não pede demissão. Ou até perde o emprego porque não quer deixar a profissão…

A charge é irreverente, é a ruptura com a burocracia, com a sisudez. Mesmo a charge de mau gosto tem algo de libertador. O piadista olha para a política e acha graça. O rapaz traz um pedaço de pizza. ‘O que é isso?’, pergunta o outro. O rapaz responde: ‘Relatório parcial da CPI.’

Sugestão de alternativa

Agora uma que mereceria processo. O Lula com os irmãos Metralha, e a legenda: ‘Presidente Lula, em seu gabinete, posando para fotógrafos, ao lado de um grupo de aliados do governo.’

A charge é iconoclasta. Todo fanático ficará irritado. E convicções religiosas então… são alvo fácil.

Nas ruínas de Roma encontrou-se um grafito anticristão do século II, provavelmente feito por algum estudante gozador. Pendurado na cruz, um homem com cabeça de burro, e aos pés do desenho a frase ‘Alexâmenos adora seu Deus’. Alexâmenos não deixou por menos. Podia ter dado a outra face mas preferiu escrever ao lado uma resposta afirmativa ao insulto gratuito: ‘Alexâmenos fiel’.

O exemplo arqueológico, em que a ‘vítima’ dialoga com o chargista amador, talvez seja uma sugestão de alternativa aos rompantes de ódio de fiéis muçulmanos às charges européias. Manifestações compreensíveis mas, com todo respeito, desproporcionadas.

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Doutor em Educação pela USP e escritor (www.perisse.com.br)