Em 2004, eu fui até a Natasha Produções, empresa, hoje extinta, criada por Paula Lavigne para agenciar a carreira de Caetano Veloso, entrevistar o cantor baiano para o meu livro sobre o jornalista Tarso de Castro. No corredor de acesso à sala, encontrei Paulo César Araújo, que havia acabado de sabatinar Caetano para a biografia, não autorizada, que ele preparava sobre a vida e obra de Roberto Carlos. O meu livro e o do PC seriam publicados pela mesma editora, a Planeta do Brasil, de origem espanhola, recém-chegada ao país. Aproveitei e contei para Paulo César que o “cabeludo” da canção Detalhes era Tarso de Castro, que nos anos 1960 “roubara” uma das paixões de Roberto, a socialite – e futura baronesa – Sílvia Amélia Chagas. Rimos juntos da história, desejamos sorte um para o outro (ele precisaria muito mais do que eu) e nos despedimos.
Lembro-me até hoje do entusiasmo de Pascoal Soto, diretor editorial da Planeta, quando o livro sobre Roberto ficou pronto, um esforço de pesquisa notável, escrito de uma maneira solta e ágil, com capítulos temáticos, bem ao gosto do público do cantor. Venderia como água. Eu estava na editora para falar sobre o meu próximo projeto: a biografia, também não autorizada, do bispo Edir Macedo. Pascoal gostou tanto da ideia que estava quase convencendo o diretor-geral da Planeta, o argentino Cesar González, a bancar o projeto. Nesse meio tempo, porém, começou todo o imbróglio envolvendo o livro do RC, que terminou, como se sabe, com o juiz da causa autografando o CD do Rei e com o acordo (que se mostrou desastroso) autorizando o recolhimento de mais onze mil exemplares da biografia – até hoje empilhados num misterioso depósito de propriedade do Roberto.
A Planeta desistiu imediatamente da minha biografia não autorizada sobre o Bispo, mas não do personagem. Anos depois, lançou “Nada a Perder”, a biografia de Edir Macedo, escrita pelo seu funcionário Douglas Tavolaro, diretor de jornalismo da TV Record. Foi um ótimo negócio para a Planeta: o livro, laudatório, vendeu mais de 1,2 milhão de exemplares. Tavolaro, assim como Pedro Bial, outro famoso “biógrafo de patrão”, também deve “ter procurado o demônio, mas não o encontrou”.
Desisti do Bispo. Passei a trabalhar na biografia de Gilberto Gil, em 2006, que sairia pela editora Civilização Brasileira, do grupo Record. Minha ideia era fazer uma biografia política do músico baiano, então Ministro da Cultura do governo Lula. Tinhas boas fontes: pessoas que haviam trabalhado na equipe do prefeito de Salvador Mário Kertész na época em que Gil presidiu a Fundação Gregório de Matos, que era o equivalente à Secretaria Municipal de Cultura, passagem que levou Gil a se candidatar a vereador, experiência, que, aliás, se mostrou desastrosa.
Muita gente acha que o Gil político foi gestado ali. Não foi. No meu livro, eu pretendia reviver uma passagem pouco conhecida de sua biografia, como os seus encontros com o Golbery do Couto e Silva, o poderoso ministro-chefe da Casa Civil dos últimos dois generais-presidentes e tido como o grande ideólogo do regime militar, que já começava a discutir o processo de abertura e queria cooptar parte da classe artística. Gil havia sido levado a Golbery por Jards Macalé, que havia me contado histórias hilárias das reuniões no Planalto. O cineasta Julio Bressane e o compositor Jorge Mautner também participaram dos encontros. Eu tinha, portanto, boas fontes, mas fui aconselhado por amigos a desistir da ideia de uma biografia não autorizada. Não conseguiria, sem a permissão de Gil, entrevistar pessoas próximas a ele, como Bressane e Mautner, por exemplo.
Mesmo assim, decidi mandar um email para a Gilda Mattoso, então assessora de imprensa de Gil, pedindo para que ela comunicasse ao então Ministro sobre o meu interesse em escrever um livro sobre a sua trajetória, com foco na sua atuação política, e se podia contar com a sua colaboração como fonte. Recebi um email da Gilda dias depois, escrito pelo próprio Gil: “Gilda, embora não me oponha à biografia que o Tom está escrevendo, gostaria que ele me informasse do que pretende fazer. Que ele insista em saber minha posição a respeito já indica um cuidado que deveria incluir comunicar-me e compartilhar comigo suas idéias sobre a biografia. Faça saber a ele estas minhas ponderações”.
Achei o tom do email ambíguo: Gil não se opunha à biografia, mas gostaria de saber o que eu pretendia escrever. Preparava uma resposta para Gil, quando li uma nota na coluna de Mônica Bergamo, na Folha: “Gil convida o jornalista Otávio Rodrigues para escrever sua biografia”. O livro do Otávio não saiu, mas o jornalista é lembrado no recém-lançado perfil biográfico de Gil escrito por Regina Zappa (Gilberto Bem Perto), que o cita na lista de agradecimentos: “Contamos com o raro e dedicado trabalho de Otávio Rodrigues, JORNALISTA E AMIGO DE GIL E DE FLORA (mulher do músico baiano)”. O livro de Regina é bem escrito, mas chapa branca, assim como o que ela escreveu sobre Chico Buarque, delicioso de se ler, mas sem demônios.
Passei a trabalhar em outra biografia, a de Sócrates, o mais politizado jogador da história do futebol brasileiro, o líder da Democracia Corinthiana. Na época, o grupo Procure Saber, uma associação da Paula Lavigne e sua turma (Caetano, Gil, Djavan, Chico Buarque) com Roberto Carlos, fazia lobby em Brasília para tentar barrar qualquer tentativa de tornar a discussão sobre a lei das biografias mais aberta e democrática. Parecia a versão classe artística para outro grupo efêmero e sem legitimidade: o Cansei. Durante toda a polêmica, até Chico Buarque, sofrendo o peso da idade, veio a público para dizer que nunca tinha dado entrevista para Paulo César, sugerindo que as aspas na biografia de RC haviam sido inventadas pelo jornalista. Paulo César não só havia gravado o papo, como o filmou: o vídeo da entrevista “viralizou” na internet. Chico pediu desculpas e saiu de fininho.
As trapalhadas do Procure Saber, porém, não ajudaram a mudar a postura da maioria das editoras, que, a partir do embargo ao livro de Paulo César, não se arriscaram a publicar livros não autorizados. O Rei fez escola. Todo suposto biografado, ou herdeiro de biografado, passou a se achar um pouco Roberto Carlos. Durante a pesquisa e apuração para a biografia sobre Sócrates, não autorizada (Roberto Feith, editor da Objetiva, corajoso, bancou o livro até a publicação, no fim do ano passado) não consegui entrevistar ninguém de sua família. Raí, o irmão famoso de Sócrates, que mantém publicamente a imagem do sujeito de ideias arejadas, progressistas (é um dos líderes de grupo Bom Senso, que cobra melhores condições para o futebol brasileiro), na prática se comporta como um censor do Dops: assim que soube do meu projeto envolvendo o seu falecido irmão, enviou uma mensagem de texto dizendo que era um absurdo eu escrever um livro sem pedir autorização à família do biografado. Culpa do Rei.
Agora, com a decisão do STF de liberar as biografias não autorizadas, Roberto Carlos deveria, pela primeira vez, deixar a carolice de lado, pedir licença a Deus e imitar o corajoso gesto de José Hamilton Ribeiro, um dos maiores jornalistas do país, que posou na capa da revista TRIP exibindo, de peito aberto, sua prótese que o permite andar desde que teve a parte inferior da perna esquerda estilhaçada por uma mina enquanto cobria a Guerra do Vietnã.
Roberto, que tal um ensaio na revista CARAS, nu, fumando cachimbo?
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Tom Cardoso é jornalista e escritor, autor da biografia “Sócrates – A História e as Histórias do Jogador Mais Original do Futebol Brasileiro”