A quebra ilegal do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa já derrubou o ministro mais importante do governo Lula, apeou do cargo o presidente da segunda maior instituição financeira do país e, ao que tudo indica, ainda poderá fazer novas vítimas em Brasília.
Não bastasse tudo isso, o caso também serviu para despertar a sociedade brasileira e fazê-la enxergar os abusos do nosso ‘Estado policial’, ou, melhor dizendo, do nosso ‘Estado bandido’. Por essas razões, Francenildo já mereceria um lugar de destaque na história brasileira. Há, porém, outro aspecto que atinge a todos nós, jornalistas. A violência cometida contra o caseiro acabou reabrindo, por vias tortas, um debate em torno do sigilo da fonte, pilar central da atividade jornalística. Na era pós-Francenildo, a questão central é: o sigilo da fonte é um direito sagrado e absoluto? Ou, dito de outra forma, os jornalistas têm mesmo a liberdade de manter anônimas suas fontes quando o silêncio acoberta um crime?
Antes de analisar o caso em si, é importante saber o que diz a Constituição brasileira, logo no primeiro capítulo, que trata dos direitos individuais. O inciso X do artigo 5º diz: ‘São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação’. Em seguida, no inciso XIV também do artigo 5º, a Constituição estabelece: ‘É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional’.
Ao publicar o extrato de Francenildo Costa, a revista Época não só revelou suas movimentações financeiras, como também atingiu sua intimidade, pois Francenildo se viu forçado a revelar a condição de filho bastardo. Em seguida, a indignação da sociedade levou o governo a agir e uma investigação da Polícia Federal acabou desvendando a cadeia de comando da operação de quebra de sigilo, feita, ao que tudo indica, por ordem direta do Ministério da Fazenda.
No entanto, ainda falta descobrir quem, efetivamente, repassou o extrato aos jornalistas da Época. Como nenhum dos envolvidos dirá que entregou os papéis, restaria uma única alternativa aos policiais: indagar diretamente os repórteres. Estes, por sua vez, tentariam se apegar à Constituição para encerrar a história. Ainda assim, ficaria a questão: um inciso deve prevalecer sobre o outro? O direito da revista Época de informar e proteger suas fontes (ainda que a informação seja parte de uma trama de governo contra uma testemunha) é mais importante do que o direito do caseiro de identificar os criminosos que violaram sua intimidade? Ou ainda: o direito dos jornalistas é mais importante do que o da sociedade brasileira de identificar os servidores que desonraram a República?
Direito da sociedade
Em defesa da revista Época, poderia se dizer que a informação sobre a movimentação financeira do caseiro é de interesse público. Afinal, se o dinheiro tivesse de fato sido depositado pela oposição – e não por seu pai biológico – a comoção nacional não teria existido. Francenildo, em vez de herói carregado nos braços da OAB, seria hoje o vilão da história. Além disso, pode-se dizer também que jornalistas de vários veículos já publicaram informações protegidas por sigilo, em especial contra personagens que não despertam tanta simpatia – gente como Paulo Maluf, por exemplo. E há, nas redações, uma tolerância em relação às recorrentes violações aos direitos constitucionais das figuras que, por vezes, encarnam o ‘mal’. Nesses casos, o raciocínio é maquiavélico: os fins justificam os meios. Portanto, se jornalistas agem assim há muitos anos contra outras pessoas, por que não com Francenildo?
São perguntas difíceis de responder, mas o debate sobre os limites do sigilo da fonte – se é que deve haver limites – é candente em vários países, em especial nos Estados Unidos, berço da democracia moderna, da imprensa livre e da Primeira Emenda, aquela que diz que nenhuma lei poderá restringir a liberdade de informação. E ao contrário do que imaginam aqueles que se apegam aos estereótipos modernos, esse debate não foi lançado pelos ‘neoconservadores da era Bush’.
Judidh Miller, do The New York Times, também não foi a primeira jornalista a ser presa por não revelar suas fontes – num de seus artigos, Miller apontou o nome de uma agente secreta da CIA e isso é crime nos Estados Unidos porque coloca em risco a vida da pessoa. A jurisprudência para que jornalistas começassem a ser chamados aos tribunais surgiu em 1972, num caso que ficou conhecido como Branzburg v. Hayes.
Branzburg era um jornalista que publicou reportagens sobre o uso de drogas no estado do Kentucky, valendo-se de fontes anônimas. Hayes era um juiz da Suprema Corte que desempatou um julgamento histórico: cinco a quatro. Na decisão, ele argumentou que o sigilo da fonte não é um direito absoluto. E ainda que a liberdade de informar não se sobrepõe ao direito da sociedade de se ver livre do crime. A decisão de Hayes obrigava Branzburg apenas a testemunhar num inquérito criminal, e não a revelar seus informantes. No entanto, a única questão relevante para os promotores dizia respeito à identificação das fontes. E foi com base nessa jurisprudência que outros jornalistas começaram a ser pressionados.
No Brasil, a mesma discussão já vinha ganhando força nos meios forenses, antes mesmo do caso Francenildo. Em abril de 2005, os juízes Alexandre Cassetari e Luiz Renato Pacheco Chaves de Oliveira, de São Paulo, publicaram um artigo instigante no Consultor Jurídico intitulado ‘Grampo público’. Eis o que eles dizem:
‘Sempre que os direitos fundamentais forem utilizados como escudo protetor de possíveis práticas ilícitas, é possível justificar a prevalência de outros princípios constitucionais implícitos ou explícitos sobre tais direitos, sem que haja qualquer mácula à ordem jurídica, principalmente constitucional’.
E mais adiante:
‘A pacificação social nunca será alcançada se for permitido a indivíduos promoverem ações ilícitas protegidos por direitos fundamentais que visam exatamente combater tais práticas.’
Historicamente, o sigilo da fonte surgiu para proteger o direito da sociedade de ser informada. Com risco de sofrerem represálias ao terem seus nomes expostos, muitos informantes evitariam contatos com jornalistas. Mas é também verdade que o princípio da confidencialidade não surgiu para proteger o crime ou as eventuais armações de governos.
Ligações anônimas
Curiosamente, eu vivi uma experiência interessante com o juiz Luiz Renato Pacheco Chaves de Oliveira sobre a questão da fonte e posso garantir que ele não faz parte da parcela do Judiciário que hoje busca enquadrar jornalistas por ideologia.
Em 2004, a Polícia Federal requereu ao juiz Luiz Renato a quebra do meu sigilo telefônico, com a suposição de que a Kroll teria sido a fonte de algumas das reportagens que escrevi. Por isso, segundo o delegado, eu também seria parte da suposta ‘quadrilha’ da Kroll. O aspecto intrigante é que uma das reportagens listadas pelo policial em seu pedido era justamente uma entrevista pingue-pongue com Jules Kroll, dono da agência de investigação americana. Portanto, a fonte era explícita. O juiz Luiz Renato, naturalmente, indeferiu o pedido, até porque eu não havia publicado qualquer informação protegida por sigilo ou obtida ilegalmente.
Mas e quanto aos grampos telefônicos, que se tornaram tão disseminados na imprensa nacional? O caso mais notório, o das fitas do BNDES, que foram obtidas sem autorização judicial e publicadas pela Folha de S.Paulo, permitiu que um empresário pressionasse um presidente da República em favor de seus interesses comerciais. Será isso legítimo? Confesso que não tenho resposta.
De qualquer forma, depois do caso Francenildo, todos repórteres que fazem parte do chamado clube do ‘jornalismo investigativo’ podem estar certos: a discussão sobre sigilo da fonte será cada vez mais freqüente. E se nós formos chamados a depor perante um juiz, poderemos até ser cínicos, dizendo que recebemos envelopes sem identificação de remetente, contendo fitas secretas ou extratos de caseiros. Ou, quem sabe, que recebemos ligações anônimas informando que havia pacotes a nossa espera debaixo de algum viaduto. Mas, em algum momento, todos nós teremos que prestar contas. Nem que seja à própria consciência.
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Editor de economia da revista IstoÉ Dinheiro e autor do livro A CPI que abalou o Brasil (Editora Futura)