Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O silêncio sobre fatos

Sob o nome de sigilo de documentos, o que se pratica e muitos querem manter é, em verdade, o silêncio sobre fatos.

O movimento surgido no Senado com tal propósito, por iniciativa de Fernando Collor e engrossado a partir do presidente da Casa, José Sarney, já obteve o êxito inicial, e importante, de despachar para o futuro incerto o projeto do governo Lula que terminaria com o sigilo infinito, para determinados documentos, e atenuaria o prazo de resguardo de outros. Na Câmara, o projeto foi aprovado sem dificuldades.

A ministra Ideli Salvatti contestou ontem as notícias de que o atual governo recuou no apoio ao projeto original, defendendo ainda, portanto, que apenas assuntos de fronteiras, de segurança nacional e de relações internacionais sejam sujeitos a 25 anos de sigilo e passíveis de renovação, uma só, pelo mesmo prazo. A rigor, já é muito, com a presença nesse bolo de registros relativos, por exemplo, à guerra com o Paraguai e aos métodos de aumento do território brasileiro, por exemplo, com a área do Acre.

Obsessão obsoleta

A obsessão pelos segredos é tão obsoleta que, caso se imponha no presente, não resistirá ao futuro já perceptível. Nesse meio tempo, o que de melhor consegue é criar mais fatos comprometedores e contradições grotescas.

Na história da imprensa consta, por exemplo, um episódio esquecido que ilustra bem o motivo dos segredos oficiais ainda impenetráveis. Jornalista audaz, celebrizado por suas denúncias da ação de companhias petrolíferas (a Esso em especial) contra o projeto brasileiro do petróleo, Gondim da Fonseca acreditou na ideia generalizada de que militares vindos da guerra na Itália se haviam tornado paladinos da democracia. Razão que os levou a derrubar a ditadura de Getúlio, da qual as Forças Armadas foram os pilares.

Com tal ânimo, Gondim entregou-se à pesquisa de mais temas silenciados. E, entre eles, publicou no poderoso Correio da Manhã uma narrativa que comprometia Caxias em problemas, não só militares, no comando das forças brasileiras. No mesmo dia da publicação, Gondim da Fonseca sumiu. Paulo Bittencourt, dono do jornal, a quem devo a narrativa, pôs-se em campo − mas nada, nenhuma pista. Foram sete dias de movimentação, conversas, recursos, presumidas ações do governo, até que Gondim fosse encontrado. Em um quartel do Exército. Sem ser contestado, fora apanhado não sabia para que fim, por buscar documentos sigilosos, até contábeis, e publicar texto inconveniente à imagem do patrono do Exército.

Camuflar e esconder a história

Não necessariamente quanto a Caxias e à guerra com o Paraguai, mas que sentido têm sigilos assim, infinitos, senão o de camuflar e esconder a história brasileira, por seus fatos e figuras, para preservar orgulhos e celebrações tantos deles dirigidos a meras fantasias históricas? Nem os aspectos da guerra propriamente, escamoteados à história oficialesca do Brasil, justificam o seu sigilo a pretexto de evitar traumatismos às relações com o Paraguai: os paraguaios sabem, escrevem e leem o que aconteceu ao seu país e ao seu povo. Quem não sabe são os brasileiros.

Os assuntos de formação territorial são o principal fundamento da oposição, no Senado, a prazos para o sigilo de determinados documentos. No Itamaraty, a resistência é absoluta. Os dois focos são movidos pelo temor de que os documentos até hoje sigilosos levem a desentendimentos com vizinhos, mais que todos a Bolívia. É outro caso, porém, em que não haverá revelação alguma a esses países. O que não pode ser conhecido dos brasileiros está até em livros escolares de lá.

Os bolivianos sabem

Em uma de suas primeiras referências às negociações que pretendia com o Brasil, Evo Morales citou, como uma das prioridades, as transações passadas e as pendências de territórios bolivianos com o Brasil. Não pode haver melhor indicação de que os bolivianos sabem o que e como se deram certos abrasileiramentos geográficos. E têm esse trunfo, enquanto o Brasil não quiser enfrentar o assunto.

Se a revelação de processos aplicados por Rio Branco atingiria os conceitos histórico e atual da diplomacia brasileira e talvez, sobretudo, a imagem do patrono do Itamaraty, está aí uma contradição. Já que os feitos e modos de Rio Branco não podem ser revelados sem consequências penosas, não caberia tê-lo como patrono da diplomacia brasileira, e até dar seu nome à escola de formação dos diplomatas, o Instituto Rio Branco.

Lula contornou a prioridade incômoda de Evo Morales com o argumento de que o assunto, naquela altura, agiria contra as muitas ajudas que seu governo pretendia proporcionar à Bolívia e a seu novo governo. Mas todos esses assuntos são apenas questão de tempo, e nem tanto tempo.

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