A não ser que tenha estado em Marte no último mês, você deve ter notado que ele apresentou uma série de desafios ao jornalismo e, mais especificamente, ao jornalismo televisivo. O cenário era de urgência informativa: Lula havia sido convocado a uma “condução coercitiva” para prestar depoimento à Polícia Federal. A pauta era de inegável noticiabilidade e havia uma pulsão coletiva em desvendá-la; ou seja, mesmo que algum veículo quisesse, não havia como fugir desta notícia.
Sabemos que hoje, com a onipresença dos meios de comunicação, todos estão aptos a dizer alguma coisa sobre tudo e, mais que isso, todos se sentem aptos a desconfiar quanto àquilo que é dito. Como pontuou com muita precisão o cartunista Adão Iturrusgarai, deixamos de ser uma nação de 200 milhões de técnicos de futebol e nos tornamos 200 milhões de cientistas políticos. Se antes todos nos sentíamos entendidos em um assunto razoavelmente mais acessível, que é o futebol, hoje todos nos vemos como especialistas no complexo cenário político – ainda que as leituras sejam, como todos sabem, quase sempre polarizadas, atreladas a uma visão ou a outra, como se não houvessem outras possíveis. Frente a isso, surge o desafio ao jornalismo: como comunicar a 200 milhões de experts em comunicação?
Dentre os inúmeros comentários que pulularam nas redes – a maioria, não poderia deixar de ser, criticando as coberturas jornalísticas, sejam as “a favor” ou “contra”- havia um posicionamento que me chamou a atenção: os que celebraram a vocação da televisão à transmissão ao vivo, como se essa fosse, prioritariamente, sua natureza e o seu futuro. À televisão caberia o direito e o dever de estar lá antes de todo mundo, trazendo a informação (que muita vez se resume à veiculação de uma imagem e à tentativa de traduzi-la) da forma mais fidedigna e isenta quanto for possível. À internet caberia então a opinião especializada, as conexões, as explicações ponderadas.
Já comentei previamente sobre esta espécie de fetiche pelo ao vivo que historicamente está ligado à transmissão televisiva. A transmissão direta, nas palavras do estudioso francês François Jost, revelaria a obstinação da televisão de obter sua legitimidade através da relação que mantém com a realidade. Esperamos da televisão a adrenalina do fato acontecendo, a tensão da “musiquinha do Plantão”, o acontecimento que se desdobra aos nossos olhos à medida em que ocorre. Reside, nesta expectativa, a ideia, um tanto contestável, de que a imagem transmitida pela televisão, junto à velocidade com que ela é obtida, seria a forma mais límpida e transparente de contato com o mundo que explode lá fora – e não uma inevitável versão, atrelada a interesses (conscientes ou não), a um olhar de alguém ou de uma máquina.
Ou seja, nos episódios da semana passada, à televisão coube a ingrata tarefa de dizer o que de fato aconteceu a um espectador propenso a duvidar dela. Foi, é claro, um festival de leituras apressadas, de edições contestadas (sobre os cortes feitos na fala de Lula, por exemplo), de atos falhos observados nas falas dos repórteres ao vivo (dos que mencionaram Lula como “preso” e logo se corrigiram). Houve ainda as pistas coletadas na internet (como os misteriosos tweets do diretor da revista Época antes da ação da PF, sugerindo a falsa isenção da Globo no episódio), além dos interessantíssimos “contrabandos” feitos pelos cidadãos que, aproveitando da instantaneidade do ao vivo, acharam brecha neste espaço nobre da emissão de massa para inserir alguma “contramensagem”, como o homem que apareceu na Globo News com um cartaz levantando uma denúncia de uma mansão da família Marinho em Paraty que estaria ligada a uma empresa investigada na Operação Lava Jato.
Enfim, a televisão providenciou todo tipo de material para ajudar a confirmar aquilo que suspeitamos: que as empresas de comunicação, especialmente as hegemônicas, mentem, distorcem, enganam. A grande repercussão do mapa do jornalismo independente feita pela Agência Pública é um sintoma deste desejo coletivo por informação isenta e desconectada de forças maiores.
Não discordo desta leitura quanto à desconfiança dos meios de comunicação, e muito do que hoje sabemos se deve a esta espécie de amadurecimento nosso enquanto receptores dos meios de comunicação. Afinal, um dos grandes trunfos das mídias digitais é, sem dúvida, ter popularizado outras leituras sobre os fatos e outras ferramentas que nos possibilitam pensar mais criticamente sobre aquilo que consumimos.
O problema, ao que me parece, é quando o cinismo vira a regra e tudo que é veiculado pelos meios sofre pela falácia do “envenenamento do poço”, que associa que tudo que sai de tal veículo (seja ele Globo, Record, Bandeirantes ou qualquer outro que o leitor queira aqui incluir) seja nocivo, pernicioso, atrelado a interesses escusos, e como se os profissionais destas emissoras fossem quase como marionetes de uma máquina absolutista. Na ponta desta relação, está uma certa ingenuidade ao não se reconhecer que estas relações entre jornalistas e veículos são dinâmicas e mesmo conflituosas, tal como em qualquer outra empresa. A hostilidade quanto a estes profissionais, ao que me parece, não é a forma mais inteligente de expressar esta desconfiança. Ou seja, não é necessariamente por trabalhar numa grande mídia que um profissional se torna menos jornalista que outro ou que ele se transforma em massa de manobra ao poder de uma empresa dominadora. As brechas estão aí para serem ocupadas.
Talvez o que episódios como este nos mostre é que é preciso repensar, afinal, para que serve a televisão, visto que a ideia da transparência absoluta da transmissão ao vivo já veio à terra há muito tempo. Em uma nação de 200 milhões de especialistas em mídia, os veículos de comunicação – especialmente os grandes – serão cada vez mais provocados a repensar sua atuação se quiserem garantir a sua relevância e permanecerem dignos de debate público. Num mundo cada vez mais difícil de ser traduzido em palavras e imagens, é um grande desafio.
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Maura Oliveira Martins é jornalista, professora universitária e editora do site A Escotilha