Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O torturador, ontem e hoje

O cinismo mais explícito deste cínico Brasil está expresso na cara lavada do incorrigível coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra, o primeiro e único oficial do Exército brasileiro condenado pela Justiça numa ação declaratória por sequestro e tortura durante o regime militar. Com a desfaçatez habitual, Ustra aflorou na Folha de S.Paulo para reclamar de um texto de Pérsio Arida, presidente do Banco Central no governo FHC. O chilique do coronel visava um lado pouco conhecido do economista: o passado de Arida como membro da VAR-Palmares, grupo guerrilheiro da extrema-esquerda.

Em um comovente trabalho – “Rakudianai” – que ocupou 27 páginas da edição de abril da revista piauí, Arida produziu uma das mais brilhantes e corajosas reflexões já feitas sobre a ditadura, o engajamento político, o medo, o drama e o pesadelo que dominaram o país durante 21 anos.

É uma primorosa meditação sobre os caminhos e descaminhos que marcaram o Brasil na sangrenta década de 1970. Pela força literária e pelo conteúdo testemunhal, é uma peça que constrange a esquerda e envergonha a direita.

O inferno

Embora não seja ali citado uma única vez, Ustra vestiu a carapuça e tachou de “delírio” o texto de Arida, que relembra a tortura sofrida no DOI-CODI de São Paulo, comandado pelo coronel na fase mais truculenta do regime, o governo Médici. Conhecido nos porões como “major Tibiriçá”, Ustra tenta rebater – sem provas, nem fatos – o relato circunstanciado de uma de suas vítimas.

O ofício de violência do coronel fala por si, com a veemência do sangue e a eloquência dos números que gritam em sua turbulenta ficha militar. Ustra operou o símbolo mais estridente do terrorismo de Estado no país: o DOI-CODI da Rua Tutóia, um antro de dor e horror que define a ditadura perante a História.

Durante os 40 meses de seu reinado, entre 1970 e 1974, morreram lá 40 presos. O cardeal Paulo Evaristo Arns contabilizou, neste período, 502 denúncias de tortura.

Só o casal Maria Amélia e César Teles sobreviveu ali onze meses de 1973 – e a dezenas de sessões de tortura na máquina de moer carne de Ustra. Os filhos, Janaína e Edson, na época com 5 e 4 anos, são testemunhas: “Durante cerca de 10 dias, minhas crianças ficaram no DOI-CODI. Dentro da cela, me viram sendo torturada na ‘cadeira do dragão’, cheia de hematomas, com o rosto desfigurado. Na semana em que meus filhos estavam ali, os torturadores falavam que os dois estavam sendo torturados. Disseram que eu seria morta. Isso foi o tempo todo. Ali era o inferno”, contou Amélia em 2006, quando começou o processo contra Ustra na 23ª Vara Cível de São Paulo.

A hipocrisia

Ao condená-lo, o juiz Gustavo Santini Teodoro observou que as testemunhas, que estiveram presas com os Teles, sustentavam que Ustra comandava espancamentos, choques elétricos e tortura psicológica. Das celas, escutavam o berro e o pranto dos presos: “Não é crível que os presos ouvissem os gritos dos torturados, mas não o réu [Ustra]”, sentenciou o juiz.

Surdo de novo à voz da razão, o sonso coronel tenta escapulir à responsabilidade classificando o irrefutável relato do economista como “imaginário, fictício e delirante”.

A sinceridade levou Arida a reconhecer que “há muito tempo deixou de ser comunista”.

A hipocrisia faz Ustra confessar que continua um torturador – agora, da verdade e da História.

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[Luiz Cláudio Cunha é jornalista]