Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O uso de cobaias e a falta do contraditório

Alguns veículos da imprensa mostram em suas edições de quarta-feira (10/9) como uma vitória da comunidade científica a aprovação no Senado, no dia anterior, do projeto de lei que regulamenta o uso de animais em pesquisas. Se for sancionado pelo presidente da República, o Projeto de Lei da Câmara 93, de 6/6/2008, obrigará a adoção de cuidados especiais antes, durante e após os experimentos ou exercícios didáticos. A proposta foi apresentada à Câmara há 13 anos pelo deputado Sérgio Arouca (1941-2003), do PPS-RJ (Projeto de Lei 1.153, de 26/10/1995).

Sem entrar no mérito da questão se deve ou não haver maior restrição ao uso de cobaias em pesquisas científicas, muito menos no que se refere à decisão do Legislativo, é preciso observar que há diferentes concepções sobre o assunto dentro da própria comunidade científica. A maior parte dessas reportagens passa para o leitor a idéia de um consenso que não existe entre os pesquisadores.

Na Folha de S.Paulo (pág. A17) a matéria ‘Senado aprova lei sobre uso de animais‘, a afirma que ‘a aprovação é uma vitória para os cientistas. Do ponto de vista prático, a medida acaba com leis municipais que tentam proibir a pesquisa com animais’, Por sua vez, no Estado de S.Paulo, a matéria ‘Senado aprova lei sobre uso de cobaias em pesquisas’ (pág. A22) apresenta apenas as posições de pesquisadores favoráveis aos termos do projeto de lei que passou ontem em votação simbólica de lideranças partidárias.

Métodos alternativos

Há três anos, no entanto, a própria Folha, na reportagem ‘O dia da cobaia‘ (caderno ‘Mais!’, 11/9/2005), atribuiu à bióloga Dolores Helena Rodriguez Ferrera Rivero, professora do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP, a afirmação de que ‘métodos alternativos, como estudos em culturas de células ou tecidos, são tão úteis quanto testes in vivo quando se deseja entender a ação de determinada substância em nível celular ou molecular’.

Essa mesma matéria de 2005 menciona o veterinário Stelio Pacca Loureiro Luna, professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp, em Botucatu, e doutor pela Universidade de Cambridge, no Reino Unido, atribuindo a ele a seguinte declaração: ‘Já está provado que não há diferença significativa de desempenho entre quem aprende com o animal in vivo e quem usa recursos audiovisuais ou cadáveres’.

Com base na orientação de diversos pesquisadores brasileiros, o deputado federal Ricardo Trípoli (PSDB-SP) propôs na Câmara o Projeto de Lei 215, de 15/2/2007, de alcance mais amplo que o de Arouca, na medida em que prevê a criação de um Código de Proteção Animal, abrangendo além da criação, o abate e outras formas de manejo de animais, normas para a pesquisa, com proibição de experimentos com animais ‘quando existirem métodos alternativos ou substitutivos à experimentação’ e ‘se o procedimento para fins de experimentação animal causar dor, estresse ou desconforto ao animal’.

Chapa-branca

Um assunto é se a proposta de Arouca é mais aceita entre cientistas do que a de Trípoli. Outro assunto é o da diferença de opiniões entre pesquisadores sobre a matéria, e isso é o que raramente aparece na imprensa. A exposição de motivos do projeto apresentado no ano passado fornece referências de diversos especialistas brasileiros e estrangeiros sobre o assunto.

Vale lembrar o que foi dito pela jornalista Martha San Juan França – diretora de redação da revista Horizonte Geográfico, que foi diretora de redação de Galileu, editora de ciência e tecnologia da revista Época e repórter de ciência do Estadão e da Folha – sobre a costumeira falta do contraditório nas notícias de ciência:

‘Enquanto repórteres de política e economia freqüentemente vão além dos releases oficiais para comprovar a veracidade das notícias, os colegas de ciência se contentam com a informação autorizada, os papers [relatórios científicos], entrevistas coletivas e revistas especializadas. Enquanto as notícias de outras áreas são normalmente objeto de crítica, a ciência e a tecnologia são poupadas – até que ocorram acidentes trágicos. Se bons jornalistas são reconhecidos – e temidos – por suas análises críticas, no caso de ciência, a investigação e a crítica costumam passar longe.’ (Martha San Juan França, ‘Divulgação ou jornalismo?’. in Sergio Vilas Boas (org.) Formação e informação científica: Jornalismo para iniciados e leigos. São Paulo: Summus Editorial. 2005. pp. 31-47)

Essa quase total ausência do contraditório na cobertura jornalística de ciência já havia sido criticada pela jornalista Mônica Teixeira, da TV Cultura, em seu estudo ‘Pressupostos do Jornalismo de Ciência no Brasil’ [in Luísa Massarani et al (orgs.) Ciência e Público: Caminhos da divulgação científica no Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Ciência, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002. pp. 133-141]. E também foi comentada pelo signatário em no artigo ‘A clonagem das notícias de ciência‘, reproduzido por este Observatório da revista ComCiência, do Labjor (Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo Científico), da Unicamp. Mas a tendência chapa-branca ainda continua.

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Jornalista especializado em ciência e meio ambiente; editor do blog Laudas Críticas