Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O beijo que assombra o sistema

Segue em alta nos jornais o fenômeno do “rolezinho”, iniciativa de lazer e interação social que se transfigura rapidamente em ação política. No noticiário propriamente dito, destaques para a decisão da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo de negar a cessão de policiais militares para manter a ordem nos shopping centers onde jovens da periferia querem marcar seus encontros, e para a retirada de páginas do Facebook que continham citação a vandalismo ou uso de drogas nas convocações para eventos. 

Em meio à fartura de opiniões e análises, registra-se a declaração do secretário da Segurança paulista, Fernando Grella Vieira, que evitou associar o movimento à delinquência, dizendo que os encontros de jovens são um “fenômeno cultural” e elogiou a iniciativa da Prefeitura da capital, que vem criando opões de lazer na periferia, com a iluminação noturna de clubes municipais e promoção de atividades culturais nos Centros Educacionais Unificados (CEUs).

Esse posicionamento do governo deixa os administradores dos centros de compra diante de uma contradição: eles precisam atrair multidões para assegurar o sucesso de seus empreendimentos, mas querem selecionar os frequentadores.

Paralelamente, a imprensa noticia que o prefeito da capital paulista escalou emissários para negociar com supostos líderes dos “rolezinhos”, nomeando o cantor popular e secretário municipal da Igualdade Racial, Netinho de Paula, como embaixador junto aos adolescentes. No entanto, tudo indica que as autoridades vão ter que ampliar o leque de suas representações diplomáticas: outros grupos, como o movimento dos “sem-teto”, prometem aderir ao novo modo de expressão coletiva.

Alguns analistas da imprensa entendem que os inocentes “rolezinhos” podem acabar reacendendo a onda de protestos que tomou as ruas das grandes cidades brasileiras em junho do ano passado.

O noticiário produz farto material para pesquisadores de comunicação e estudiosos de outros campos, que têm o privilégio de testemunhar a concretização de um cenário vislumbrado há décadas por pensadores como Vilém Flusser e Martin Buber, entre outros.

Consumidor e cidadão

Flusser antecipou a avalanche de mudanças que viriam com a comunicação mediada por computadores; Buber observou a intersubjetividade, ou seja, as possibilidades do diálogo entre sujeitos e entre sujeitos e objetos.

O fenômeno dos “rolezinhos” vai muito além dos fatos que a imprensa consegue captar e das opiniões que podem ser veiculadas nos jornais: seria preciso um estado do tamanho da sociedade para produzir um controle minimamente eficiente das somas de individualidades que se deslocam para os shopping centers – e seria necessário conhecer o íntimo de cada um desses sujeitos para compreender o que deseja a multidão. No entanto, com todos os riscos, é inevitável simplificar.

Numa das vertentes do movimento que se podem apreender das expressões captadas pela imprensa, poderíamos chamar os “rolezinhos” simplesmente de “encontros para beijar”, ou, como já foi feito em outros eventos, de “beijaços”. Ou seja, muitos dos jovens comparecem aos encontros nos shopping centers simplesmente para reconhecer fisicamente seus amigos e amigas das redes sociais digitais e consolidar a interação com um beijo na boca.

Somente com esse aspecto já teríamos material de sobra para classificar esse fenômeno no contexto da sociedade contemporânea, na qual a tecnologia de informação e comunicação joga um papel central. No entanto, é preciso incluir nesse quadro outros protagonistas, ou seja, as entidades comerciais que se beneficiam das mobilizações massivas quando elas têm como objetivo o consumo, mas tremem de medo quando o desejo das multidões é apenas trocar beijos.

Esse aspecto é descrito com precisão pelo colunista Janio de Freitas, da Folha de S.Paulo, na edição de quinta-feira (16/1). Sob o título “Os homens de preto” (ver aqui), o jornalista descreve a fotografia na qual aparece meia dúzia de jovens, descontraídos, com copos de lanchonete nas mãos, sendo abordados por quatro seguranças do shopping center, pelo menos dois deles com armas em punho.

Essa é a imagem da contradição essencial: o sistema precisa das massas de consumidores, mas não os quer como cidadãos.

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