Três organizações não-governamentais – Artigo 19, Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) – apresentaram um relatório à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), na segunda-feira (10/3), no qual ‘chamam a atenção para disposições legais e práticas judiciárias que têm constituído violações ao direito à liberdade de expressão no país, em especial o uso abusivo de recursos judiciais contra veículos de comunicação, jornalistas e defensores de direitos humanos’. Embora a íntegra do relatório não esteja disponível para conhecimento público, esta é a informação que consta do release divulgado pela ONG Artigo 19.
Para além de eventuais ações de má-fé e da polêmica provocada pelas ações de fiéis, aparentemente articuladas pela Igreja Universal do Reino de Deus contra a Folha de S.Paulo e a repórter Elvira Lobato – que estão, uma a uma, como se esperava, sendo derrotadas na Justiça – emerge uma velha questão que diz respeito ao conflito entre o direito à liberdade de expressão – estendida às empresas de comunicação como liberdade de imprensa – e alguns direitos e garantias individuais como a presunção de inocência, o direito de resposta e o direito de imagem.
Quando essas questões merecem a atenção da grande mídia – e também de ONGs – elas surgem como um alerta às ‘tentações da censura’ e ao risco que a liberdade de imprensa estaria correndo no país. Não fica claro, no entanto, quem é exatamente o titular dos direitos envolvidos e quem, afinal, os coloca em risco.
Ditaduras diversas
As palavras, como as idéias, têm história. Existe um ramo da lingüística – a semântica – que trata exatamente disso. No nosso campo de trabalho – a comunicação (ou seria a mídia?) – várias palavras têm mudado de significado desde que, introduzidas na língua portuguesa, foram se incorporando à linguagem nossa de todos os dias. Poderia haver melhor exemplo do que a própria palavra comunicação? A língua é parte da cultura e ambas, naturalmente, são dinâmicas, mudam com o tempo, são históricas.
A idéia liberal de liberdade de imprensa tem uma história como todas as outras idéias e palavras. E essa história começa há mais de quatrocentos anos, na Inglaterra do século 16.
A questão central que tem servido para definir os diferentes significados de liberdade de expressão ao longo do tempo é exatamente quem ameaça a sua existência. A identificação desse quem – instituição e/ou pessoa – faz parte da construção pública do significado da palavra e, considerando a importância da imprensa (da mídia), constitui elemento crucial da própria disputa pelo poder político no mundo contemporâneo.
Inicialmente, a ameaça vinha do Estado absoluto, onde o poder do rei (ou da rainha) era considerado de origem divina. Religião e poder temporal se confundiam. Um dos textos fundadores da defesa da liberdade de expressão tem sua origem num discurso contra a proibição do divórcio e contra a censura prévia de livros, escrito por John Milton em 1644, o famoso Areopagítica.
Com o passar dos séculos e o surgimento dos jornais de massa, o poder absoluto foi sendo substituído pelo Estado de Direito. Mesmo assim, o poder do Estado ‘autoritário’ continuava a ser a grande ameaça à liberdade de expressão. Essa foi a experiência de países governados por ditaduras de diversas origens ideológicas. A censura do Estado impedia a liberdade de expressão como condição mesma de sua manutenção no poder. O Estado Novo e a ditadura militar iniciada em 1964 são exemplos que não podem ser esquecidos no nosso país.
Sujeito dos direitos
Com o tempo, no entanto, a imprensa acabou por se transformar num grande negócio. Os principais jornais passaram a fazer parte de conglomerados empresariais com interesses econômicos e políticos e, eles próprios, se constituíram em atores importantes na disputa pelo poder nas sociedades de Estado democrático. A ameaça à liberdade de expressão passou a vir não somente do poder do Estado, mas também do poder desses grandes conglomerados. Essa nova realidade possibilitou, em alguns casos, o que se chamou de ‘privatização da censura’, de ‘jornalismo sitiado’, e levou, inclusive, à inclusão de critérios de concentração econômica nos índices de avaliação da liberdade de imprensa em países democráticos.
Os últimos acontecimentos entre nós, no entanto, parecem identificar o risco de um novo e estranho desdobramento.
Disputas de mercado, de poder e influência – e a ausência de fronteira entre interesses religiosos e a finalidade da concessão de serviços públicos de radiodifusão – tem levado grupos de mídia, seus porta-vozes e algumas ONGs a considerar que a ameaça à liberdade de expressão estaria agora partindo do próprio cidadão, sujeito principal do direito. Seria ele que, por sentir-se atingido em seus direitos individuais, estaria, através de ações junto ao Poder Judiciário, ameaçando a liberdade de expressão.
Essa nova significação do que seja a liberdade de imprensa desloca totalmente o sentido histórico de seu sujeito original – o cidadão. Além disso, ao deslocar a ameaça à liberdade de expressão para as ações de cidadãos impetradas na Justiça, coloca-se sob suspeição o garantidor do equilíbrio entre o Executivo e o Legislativo no Estado Democrático de Direito, isto é, o Poder Judiciário.
A necessidade de uma nova Lei de Imprensa está na ordem do dia. O momento é oportuno para uma ampla e democrática discussão de todas essas questões e, sobretudo, dos conflitos entre direitos garantidos constitucionalmente.
O que não podemos permitir é que o sujeito dos direitos – o cidadão – seja transformado em ameaça à realização desses mesmos direitos. Seria um desserviço à democracia e, aí sim, uma grande ameaça à liberdade de expressão.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)