Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O dia da incerteza

Descobri o óbvio da angústia existencial jornalística: a dúvida. O que dizer quando não se tem o que dizer? Inventam um negócio e ninguém sabe explicar o que é. Aconteceu um crime e não se tem o criminoso. Diante do caso, o jornalista arrisca ter um piripaku. O dia da dúvida é o dia dele se encontrar com a morte.

É o dia das bruxas, o dia da motosserra, a sexta-feira 13. Só há uma saída transcendental para o caso. Só um poder divino para acabar com essa agonia: ou ela inventa uma religião ou inventa uma solução – o que dá no mesmo.

O caso Isabella Nardoni é assim. Uma menina é morta e não se sabe quem a matou. Qual a primeira providência do jornalismo apavorado? Buscar um santo padroeiro, alguém que opine com absoluta certeza sobre algo que não se tem certeza. E a polícia se presta a este serviço religioso. Meia hora depois de encontrado o corpo (digo exageradamente, claro), a delegada já tinha sua crença estabelecida: foram os pais. Tudo o mais que veio depois reforçava esta convicção. E o jornalismo? Bem, o jornalismo reproduziu a posição policial.

E como?!

Espetáculo de sandice

Cada testemunha que dava seu depoimento tinha suas palavras expostas na TV quase imediatamente. A gente ficava sabendo de tudo que eles falavam lá dentro para o escrivão. O escrivão virou repórter ou auxiliar de repórter. Mais um pouco e tínhamos uma câmera transmitindo o espetáculo. O espetáculo do medo, não vamos esquecer. Porque a polícia tinha uma tese e o jornalismo tinha um pavor. O pavor de ficar sem ter o que dizer aos leitores/telespectadores. O pavor se tornou a tese da polícia. Ah, sim, a do promotor também.

Também ele tinha sua convicção formada bem antes da perícia concluir seu trabalho. Deste promotor, ouvi numa das centenas de entrevistas à televisão algo assim: ‘Precisamos do apoio popular.’

E eu fico pensando se a Justiça precisa do clamor popular para exercer sua missão. Precisa deste horrendo espetáculo humano de formar platéia nas ruas para clamar por sangue? Eu acho que não. Acho que esta bizarrice, os apupos aos indiciados no crime, os gritos de ‘Assassino!’ etc. apenas revelam que a espécie humana nada evoluiu. Estes que estavam lá (ainda estão?) certamente provam a existência do elo que temos com o pithecanthropus. O espetáculo de sandice – necessário, segundo o promotor – mostra que a imprensa cumpriu seu papel: fez um espetáculo tão bom que botou o povo nas ruas para gritar e festejar o espetáculo.

Mas isso é outra história.

Em ciência, não há ponto final

A questão é a dúvida. E o pavor que ela cria para os jornalistas.

Em algumas áreas, coitados, eles tremem. Talvez pela arrogância (e ignorância) de achar que tudo tem que ter resposta e resposta conclusiva. Vou dizer mais: não é que a sociedade queira resposta, é o jornalista – na sua prepotência – que não admite existir algo sem resposta. Mas existe, meu caro.

Quem lida com a ciência, sabe disso. Vejamos o caso dos transgênicos. Plantas criadas em laboratório estão sendo plantadas e comercializadas no país. Os ruralistas, os fabricantes/vendedores de transgênicos e boa parte desse governo dizem que não há problema para a saúde nem para o meio ambiente. O jornalista burro, limitado, ruim de dedo, bota lá: segundo o governo, ou tal cientista, transgênico não é problema. E ponto final. Se a ‘autoridade’ ou o ‘especialista’ fala, estamos resolvidos.

Em ciência, porém, não há ponto final. Tudo está em mutação, inclusive e principalmente os pontos de vista. Nenhum cientista pode afirmar que tal produto não causa risco ao ser humano. Pelo menos, numa convicção de longo prazo. O que ele pode dizer é: ‘Conheço estudos que mostram que não há danos’; ou ‘Sei de estudos que apontam que hoje não há riscos maiores’; ou ‘Estudos mostram que há riscos e outros mostram que eles são muitos’.

O que não se sabe, inventa-se

A incerteza. Esta é a base da ciência. Talvez a maior. O que hoje é verdade, amanhã pode ser mentira. Mas o repórter não admite a incerteza. Por exemplo, nenhum cientista pode dizer que o transgênico é inócuo à saúde humana porque simplesmente não se conhecem estudos completos sobre isso. Não existem estudos que incluam o monitoramento de quem consome e de quem não consome. Mas o repórter (supondo a sua boa-fé, claro) não gosta disso. Ele não admite a incerteza. Então encontra um cientista que diz: ‘Olha, meu caro, o transgênico não causa problema porque há dez anos se consome transgênico nos Estados Unidos e ninguém ficou doente por lá.’

Afirmações como essa nada têm de científico. Qualquer um poderia dizer: meu vizinho fuma há dez anos e está muito bem de saúde. São frases inúteis e ignorantes. Mas para o repórter (supondo sua boa-fé!) é o bastante. E reproduz no jornal o que disse o tal PhD. É uma bobagem, mas ele leva a sério e acredita que seus leitores também vão levar a sério. E talvez dê certo: muita gente ainda acredita em papai Noel, no programa da Xuxa, na imparcialidade da imprensa e que todos os cientistas estão preocupados com o bem da humanidade.

A incerteza do repórter o leva a criar mitos, falsear a realidade, sustentar a cultura da ignorância. A regra é: o que a gente não sabe, a gente inventa. E se a gente não inventa, vamos arranjar outro que invente. Se possível, uma autoridade ou um especialista. É muito bom quando a autoridade inventa. O repórter não precisa questionar e o caso está encerrado.

Uma grande festa das bruxas

Um dia desses o ministro das Comunicações, Hélio Costa, disse que rádio clandestina derruba avião e que o labirinto burocrático do seu Ministério era curto e fácil. E o repórter não se atreveu a pesquisar se era isso mesmo. Se fizesse o primário do jornalismo – checar os dados – descobriria que o ministro, digamos, equivocou-se. Um equívoco com intenções ideológicas, diga-se a bem da verdade. E tem um elemento a mais nessa história, que é o fato de uma autoridade – como foi o caso de Hélio Costa – falar exatamente o que o patrão do repórter gostaria de ouvir. É a sua realização, agrada o patrão, resolve a dúvida, dispensa o pensar.

O caso Isabella Nardoni tem relação com tudo isso. O enquadramento do jornal é para condenar o pai e a madrasta da menina. O trabalho do repórter é descobrir mais indícios que provem a tese. ‘Descobrir mais indícios’ é força de expressão. Na verdade, o repórter vai a campo com dois objetivos: pegar mais informações com a polícia e criar cenas ou depoimentos que sustentem o espetáculo. E a incerteza se torna uma grande festa das bruxas.

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Jornalista, escritor, pesquisador em comunicação, autor de dois livros sobre rádios comunitárias