Cocaína, heroína, um acidente automobilístico, uma celebridade polêmica há tempos desaparecida, um evasivo depoimento do médico que acompanha o paciente e a ‘bomba’, conhecida por dez entre dez jornalistas dos cadernos de Esportes do país: Walter Casagrande Jr., o Casão, ex-goleador e comentarista da TV Globo, está sob tratamento para tentar se recuperar de uma dependência química que teria se agravado nos últimos anos. É o que está na revista Placar que chegou às bancas na quinta-feira (27/03). A julgar pelo que foi adiantado no site da publicação, trata-se de puro jornalismo marrom.
Claro que Placar vai vender muito, quem sabe até quebrar o recorde de vendagem, para satisfação do departamento comercial. Porém, a edição desta semana da revista que já foi a mais importante publicação esportiva do país – e que hoje circula minguada, com periodicidade mensal – poderá significar um marco histórico. Até aqui, nem todas as publicações da Editora Abril adotavam a linha editorial e o padrão de jornalismo-cafajeste da revista Veja, o carro-chefe da editora.
O número 1318 de Placar, no entanto, parece configurar uma tentativa da direção da Abril de resgatar a importância que a revista já teve no passado, só que agora utilizando o mesmo, digamos assim, ‘padrão de qualidade’ adotado na Veja. Ou seja, Placar pode estar começando a passar por uma fase de ‘bronzeamento’ para recuperar a relevância entre as publicações esportivas não pelo aumento de sua credibilidade jornalística, mas pela capacidade de fazer barulho, ter matérias repercutindo nas cada vez mais lamentáveis mesas-redondas da televisão e, sobretudo, vender bastante nas bancas.
Interesse do público vs. interesse público
No caso dos problemas de Casagrande com as drogas, não é difícil entender por que Placar se enlameou ao decidir contar a história do ex-craque. O jornalista Juca Kfouri, que chefiou a revista quando ela não precisava de apelação para vender, resumiu a questão da publicação da matéria: o drama do ex-jogador ‘é de interesse do público, mas não de interesse público‘.
Pode parecer complicado, mas não é: há muita coisa por aí que os jornalistas ficam sabendo e que o público também adoraria saber, mas que dizem respeito unicamente à vida privada das pessoas. E ainda que estas sejam figuras públicas, devem ser preservadas, salvo nos casos em que se tornem matérias também de interesse público.
O recente episódio do ex-presidente do Senado Renan Calheiros (PMDB-AL) é um bom exemplo para ilustrar a diferença entre as duas coisas. Enquanto Mônica Veloso foi amante do senador alagoano, jornal algum deu matéria sobre o affair, embora certamente a notícia pudesse despertar bastante interesse do público. Quando, porém, Mônica, que já nem era mais amante do senador e discutia na Justiça o valor da pensão da filha que teve com Renan, o acusou de ter pagado a pensão até ali com dinheiro de um lobista, a coisa toda mudou de figura e o caso passou a ter interesse público, que só fez aumentar o interesse do público, ainda mais na medida em que Mônica passou a revelar detalhes das suas relações com o Calheiros.
Antes que algum leitor afobado questione por que razão o episódio envolvendo Casagrande estaria apenas na primeira categoria e, portanto, deve ser mantido fora da mídia, ao passo que as agruras de Diego Armando Maradona, outro ídolo do futebol, podem ser exploradas à exaustão pela imprensa, é preciso estabelecer logo a diferença crucial entre os dois casos: Maradona sempre tratou de seus problemas privados em público, já concedeu várias entrevistas sobre a sua dependência de cocaína e após as diversas internações por que passou fazia questão de falar com a imprensa.
Maradona, portanto, autorizou que a sua vida privada fosse parar nas primeiras páginas dos jornais. E este absolutamente não é o caso de Walter Casagrande Jr., que jamais tratou de seus problemas pessoais em público. Ao contrário, o comentarista da TV Globo nunca escondeu seu drama dos colegas do meio jornalístico – para os mais próximos chegou a deixar claro, em vários momentos, que precisava de ajuda –, mas também nunca manifestou o mais remoto desejo de tornar públicos os seus problemas pessoais. Se quisesse, nada seria mais fácil a alguém com tanto trânsito no meio: bastaria escolher o veículo ou o jornalista e contar a sua história.
Sem vergonha de explorar a dor
Casagrande não falou à reportagem da revista da Abril, até porque está há quase seis meses isolado em uma clínica de recuperação, da qual só sairá quando os médicos permitirem, mas alguns de seus familiares o fizeram, certamente para tentar evitar que a ‘reportagem’ saísse com o tom sensacionalista típico da imprensa marrom.
O esforço foi em vão. A matéria de Placar ainda não esta disponível, mas o que está no site da revista é de arrepiar. Primeiro, chama a atenção o que deveria ser a íntegra da entrevista com o médico do ex-jogador, que não diz absolutamente nada de relevante, apenas avisa que não pode falar nada sem autorização da família. Ora, por que publicar a ‘íntegra’ de tal ‘entrevista’? Fácil: apenas para mostrar aos leitores que o doutor Artur Timerman não desmentiu a versão da revista. Ainda pior é o verdadeiro carnaval que o site vem fazendo em torno de uma ‘apuração’ de fatos conhecidos até pelos focas das editorias de Esporte de qualquer jornal que se preze. Há uma inacreditável entrevista, em áudio, com o repórter da matéria em que ele revela ter iniciado a ‘investigação’ em novembro do ano passado e entrevistado 16 pessoas para conseguir detalhar o drama do ex-jogador.
Mas o grande problema da matéria continua sendo o objeto da investigação. Qual o interesse público em divulgar o que Casagrande ingeria ou não ingeria em sua vida privada, particular? Por que contar uma história, que como tantas outras envolvendo drogas, é carregada de dor e de pequenas ou enormes tragédias privadas? Por que não esperar Casagrande deixar a clínica e pedir autorização para publicar a ‘reportagem’? Se ele, ao final do tratamento, se dispuser a falar da sua recuperação ou quiser fazer campanha contra drogas, tanto melhor. Não seria um ‘furo’ de Placar nem de ninguém, seria apenas reportagem de utilidade pública, para servir de exemplo e alerta sobre o mal que as drogas causam. Nada que interesse a imprensa marrom, para a qual o que vale são os exemplares a mais que podem ser vendidos com a exposição da dor alheia. E as verdinhas no cofre, naturalmente.
PS em 01/04/08: O artigo acima foi escrito antes da chegada da Placar às bancas. Este observador já teve acesso à revista e leu a ‘matéria’, cujo conteúdo apenas corrobora o que foi escrito acima. A invasão de privacidade é completa – até o salário do comentarista da TV Globo é divulgado. É de interesse público saber quanto recebe Casagrande ou se a empresa para qual ele trabalha decidiu pagar o tratamento de seu funcionário? A ‘matéria’ também detalha como acabou o casamento do ex-jogador e traz uma frase sarcástica da ex-mulher sobre a atual namorada dele, outra informação de enorme relevância para a compreensão do drama.
O lixo que está na revista Placar só não provoca engulhos maiores porque alguém na redação teve o bom senso de não fazer da ‘matéria’ a capa da revista – há apenas uma chamada discreta, felizmente. O texto da reportagem também tenta ‘suavizar’ a picaretagem, mas usar palavras doces não esmaece o tom marrrom da publicação.
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Blog do autor: Entrelinhas