Sunday, 29 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O Estado de S. Paulo

FOTOGRAFIA
Rosane Pavam

Famosos enfrentam sua própria sombra

‘As entrevistas vivem, como as fotografias, da sombra de seus autores. São eles que conduzem a conversa. São eles, na maioria das vezes, os editores impiedosos de respostas e perguntas, laboratoristas da imagem ideal e criadores de contornos. Entre Aspas – Diálogos Contemporâneos reúne 27 entrevistas/fotografias de Fernando Eichenberg realizadas em um período de cinco anos, a partir de 1999, para a televisão, jornais e revistas do Brasil (a exceção é uma saborosa conversa inédita com o ator Michel Piccoli). O resultado é muito interessante. E revela, em grande medida, as preocupações atuais.

Eichenberg falou com nomes centrais da cultura de seu tempo. Por cultura se entendam aqui a literatura, o cinema, o design, o teatro, a filosofia, o futebol, a música, o feminismo, a presidência do Fundo Monetário Internacional. Curioso, bem posicionado em território europeu e pautado por mentes inquietas, Eichenberg foi atrás de personalidades por quem choram os jornalistas ditos ‘culturais’. Ele esperou nas coxias, sentou-se à sala de trabalho dos homens célebres, presenciou vários ensaios. E abriu seu livro dialogando com o cineasta Jean-Luc Godard.

Não importa que, na entrevista aqui descrita, o peito de Godard esteja parcialmente fechado. Eichenberg falou com Godard. É como se o repórter tivesse se aproximado não de Deus, nem de seu filho, talvez de um São José. Jean-Luc é o pai desavisado do cinema: se não o inventou, ele o viu crescer, embalou-o em noites de cumplicidade. Eichenberg soube precisar a distância que lhe cabia diante de um homem que puxa o tempo com carroça própria. Foi até a entrevista muito preparado, como, de resto, em todas as outras. Godard respondeu-lhe objetivamente e, ao que parece, sempre.

A Eichenberg, o diretor francês (teima-se em frisar sua origem suíça) disse esta bonita frase, depois de constatar que até mesmo os carros da Renault, hoje em dia, reivindicam assinatura: ‘Eu não sou mais autor’. Então o artista que participou de um sério movimento pela particularidade dentro da arte industrial agora se vê como parafuso de engrenagem? Foi o que ele disse a Eichenberg. Foi e não foi. Não é que Godard tenha mudado de opinião neste particular. Ele apenas não aceita que suas idéias o surrupiem, se postas a público. Então, ele inventa as próprias regras ao se definir.

É verdade que, para chegar a esta frase tão importante, Eichenberg agiu como um evocador. Neste livro, ele parece esperar que o entrevistado raciocine a partir do já dito em outras ocasiões, que repercuta as próprias declarações. É uma insegurança de autor, que resulta em uma artimanha inteligente – ou é só uma artimanha inteligente. A conversa entre jornalista e artista parece, de todo modo, truncada por estranhezas. Godard está desconfiado. Ele deve ter recusado a autoria em algum outro lugar. Mas é delicioso ouvi-lo declarar isso dentro de um contexto nacional.

Muitos entrevistados de Eichenberg, como uma irônica, filósofa e culta Fanny Ardant, ou a expressiva atriz Charlotte Rampling, nem mais se lembram do que um dia disseram, apenas entram no jogo como quem brinca. Eichenberg é quase como um acusador de incômoda memória, que faz perguntas a partir de declarações armazenadas nos jornais, e, por esta razão, incertas.

O resultado é que, ao estar diante desse jornalista, o entrevistado se sente familiarizado, organiza velhas e maravilhosas histórias, à moda do escritor Ismail Kadaré, que narra as peripécias em torno da preservação de seus originais dos burocratas comunistas. Também pode acontecer de o entrevistado ratificar elegantemente os próprios arroubos de arrogância, como o deificado Aimé Jacquet, técnico da seleção francesa vencedora da Copa de 1998. Antes da final com os canarinhos, o treinador afirmou numa preleção ser o Brasil ‘um país diletante’, mas logo depois de ganhar o título, diante de nosso repórter, admitiu a infidelidade do placar à realidade da partida: ‘Três a zero foi muito pesado’.

Eichenberg é um jornalista que cultiva as negativas. A ele, o filósofo Jean Baudrillard diz: ‘Eu não me vejo como intelectual’. O designer Philippe Starck parece ainda mais sério: ‘Não sou inteligente’. Ambos, diversos como possam parecer o animador de uma idéia de virtualidade no mundo atual e o artesão dos objetos futuristas-utilitários de sonho, estão em um mesmo barco. Querem salvar o mundo da alienação. Starck, segundo Eichenberg, é quase um devotado às causas do terceiro setor. Todos, em alguma medida, preocupam-se com o destino do homem, lutam para evitar seu fim.

Paul Virilio, que aqui fala mais claramente do que em seus livros, sugere o imperativo de resistir, de reaproximar os seres humanos. O filósofo proporciona um dos momentos mais empolgantes do livro ao descrever o ‘divórcio da copulação’ provocado pelas famílias monoparentais, sem filhos porque necessitadas de preservativos, e portanto próximas de um sexo permanentemente virtual. Tal divórcio aboliria, a seu ver, as circunstâncias naturais de procriação, a continuidade da espécie. Seu perfil é uma grande e motivadora surpresa.

Muitas vezes, o tom apocalíptico das conversas nos coloca em dimensão extra cotidiana. É quase hora de rememorar a infância e, momentos antes da morte, pedir um sorvete, como fez Honoré de Balzac, segundo informa o entrevistado Michel Schneider, psicanalista francês que investigou os instantes derradeiros de 36 escritores. Eichenberg tem preocupações humanistas e as expõe por meio de seus entrevistados, com coragem e simplicidade. Às vezes, falta um tom pessoal nas introduções, uma descrição de dificuldades jornalísticas, que a entrevista com Wim Wenders, a mais bem-humorada e personalista do livro, ao fim nos dá.’



CINEMA & BRASIL
Laura Greenhalgh

Ciladas de um narcisismo primitivo

‘De como dois filmes acenderam polêmicas sobre os clichês em torno do exotismo brasileiro

Dois filmes colocaram na berlinda imagens do Brasil. Não as imagens de belezas naturais sobejamente decantadas, mas as de um País que, entre outros balangandãs nacionalistas, ufana-se de ter as mulheres mais lindas do mundo, as praias mais fantásticas do planeta, o melhor futebol de todos os tempos, a festa popular mais animada do calendário gregoriano — e por aí vai. São tantos os superlativos que, humildemente, Deus até consente: é brasileiro.

Um dos filmes em questão, a produção americana Turistas, do diretor John Stockwell, parece ter invadido esse paraíso tropical com câmeras e um roteiro rocambolesco, revelando um Brasil onde estrangeiros são tapeados, estapeados, roubados e podem perder seus órgãos para uma rede de traficantes. Típica baboseira hollywoodiana, o thriller estreou há dias nos EUA, sob uma enxurrada de farpas. Como resumiu o educado crítico da revista Variety, ‘trata-se de um filme mais desagradável do que assustador.’

Pela internet, organizaram-se comunidades de brasileiros ofendidos. ‘Não assistam a isso! Não dêem dinheiro a uma produção que visa acabar com a nossa imagem. Boicote já!’ Ao mesmo tempo, no circuito nacional o público tem assistido ao documentário Olhar Estrangeiro, da diretora Lúcia Murat, que mostra a inadequação dos ‘clichês de Brasil’ cultivados pelo cinema lá de fora. Ora, ora, como são bobinhos esses gringos, pode-se até concluir ao término da sessão.

Mas a polêmica está longe de ser tão banal, garante o sociólogo Eurico Cursino dos Santos, 45 anos, professor da Universidade de Brasília (UnB). ‘Temos de decifrar a nossa esfinge, porque ela nos ameaça e pode nos devorar…’, pondera. Nesta entrevista ao caderno Aliás, Eurico explica como nós, brasileiros, fomos parar dentro de um mito e continuamos a viver dentro dele. Como somos vítimas de um narcisismo primário, que nos faz reféns de imagens congeladas de nós mesmos. E como gastamos energia negando o que deveras existe. São achados teóricos que têm a ver com a formação do povo brasileiro. Tivéssemos a possibilidade de transcender como Nação, certamente mandaríamos às favas o que pensam de nós os estrangeiros e trataríamos de construir um país mais justo e eficaz para todos. Este é o tema central da entrevista que se segue.

Esta semana falou-se em clichês sobre o País. Como definí-los?

Clichês são representações toscas, não refletidas. São geradas pelo preconceito dos outros. No caso desses clichês negativos a nosso respeito, não temos como combatê-los por falta de recursos históricos e realizações morais. Ao contrário, nossa vergonha histórica faz com que só possamos contrapor outros clichês, como os do samba, futebol e carnaval, aos que lançam sobre nós.

O que o senhor quer dizer com ‘nossa vergonha histórica’?

Ela vem do fato de sermos compelidos a agir contra os ideais de fraternidade universal que nós admitimos ter. Isso porque, no período embrionário de nossa cultura, usamos esse ideário como fachada para a promoção da mais radical desumanidade: a escravização. Como não podíamos justificá-la convenientemente para nós mesmos, adquirimos o vício de não levar a sério as conseqüências coletivas de nossos compromissos morais individuais. Ficamos, desse modo, moralmente mesmerizados.

Não gostamos de ver a miséria humana brasileira exposta, mas também não a levamos a sério. É isso?

A inacreditável realidade das crianças largadas e da humanidade vivida de modo abjeto nos tolhe e faz com que tenhamos uma reação, como disse um francês a nosso respeito, pouco séria. De que nos adianta ficar respondendo que não existe o que evidentemente existe? A única resposta capaz de fazer cessar a perversidade dos clichês de conteúdo, como os do filme Turistas, ou os clichês que Olhar Estrangeiro também coleciona, é responder a essa grave contradição oculta. Teremos de decifrar nossa esfinge. Porque ela ameaça, como boa esfinge, e desde sempre, devorar-nos.

E, decifrando nossa esfinge…

Poderíamos então cuidar de nossas vidas, sem nos incomodarmos com o ‘olhar estrangeiro’. Até poderíamos transformá-lo . Isso acontece mais ou menos como aquela ‘sabedoria’ aplicada à infância. Ela recomenda que não nos apoquentemos com apelidos maldosos. Tal procedimento é o que os faz cessar e nos conduz àquilo que de fato desejamos: ser chamados pelo próprio nome.

Quando manifestos navegam pela internet incitando o público brasileiro a boicotar um filme de conteúdo desfavorável ao País, isso sinalizaria um ufanismo pátrio?

Há um ufanismo que deve ser compreendido assim: uma reação excitada e culpada, que não admite que se diga algo que possa ferir sua imagem congelada. É como o Narciso que mira a si mesmo nas águas plácidas do lago, imagem pela qual está miseravelmente apaixonado. Falo de um narcisismo primário, cuja exacerbação leva ao mal que nos aflige. Esse processo se dá pela carência de ideais transcendentes que possam tirar o sujeito do namoro com os próprios vícios e misérias, e projetar seu horizonte existencial no desejo de aprimorar-se moralmente.

Um exemplo, por favor.

Veja o que acontece com a nossa juventude. Pioram os índices de desempenho escolar, mas crescem os de alcoolismo e uso de drogas. Esses jovens poderiam estar fazendo ‘o bem’, no sentido da moral sociológica, como jovens de outros países. Não é o que vemos no Brasil. Aqui, ao invés de aprender música e artes plásticas, a juventude bebe, usa drogas e acha o ápice a existência humana andar de jet-ski.

O que leva ao narcisismo primário?

Somos compelidos a ele pela composição da sociedade. Ela traz o legado histórico da religião colonial, que nos leva a abraçar nossas próprias misérias como se não houvesse outra saída, como se não fosse possível cultivar a ambição de, com o tempo, melhorar para valer. O projeto político de uma sociedade precisa da contrapartida moral dos indivíduos. Mas, quem é que está disposto a viver de uma forma diferente para contribuir com esse projeto? Tornamo-nos escravizadores. Este seria o triste destino da nossa sociedade? Sim, mas a idéia de destino não é fechada. Se olharmos retrospectivamente, a sociologia nos dirá como chegamos até aqui, mas não nos dirá para onde vamos. Depende de nós. As cartas estão sendo jogadas agora.

Ficamos irados com filme estrangeiro que aponta nossas mazelas, mas convivemos com programas de televisão que fazem o mesmo. Ou seja, na televisão pode?

A mídia é uma usina de clichês. Só que a televisão já faz parte do mito, portanto, tudo lhe é perdoado. No cinema, queremos a verdade. E, se não nos dizem, ficamos bravos. De modo geral, a mídia promove a produção contínua de idéias diáfanas, com as quais pensamos e ‘resolvemos’ a vida, dando continuidade ao legado de ‘auto-enganação’ sobre o que somos de fato: uma sociedade de escravos, senhores e dos que vivem nos interstícios dessa relação básica. Afinal, como é que se formou a mentalidade brasileira? Ela surgiu da crença universalista ética e igualitária que ‘pairava’ na alma dos brasileiros, sem orientar-lhes de fato a ação, e de uma leitura mágica da realidade em meio à dor geral da escravidão. Há dentro de nós uma espécie de uivo permanente e aterrador, que assombra desde o período de constituição da nossa alma.O resultado foi um truncamento da ‘sabedoria social’, ou moral, de todos e de cada um. Assim acabamos gerando uma visão mítica de nós mesmos.

Como?

Vivemos no interior de um mito. Digo isso no sentido de uma idéia distorcida e embaçada da realidade. Vou dar um exemplo. Perceba a incrível discrepância entre as instituições de redenção social – como a Febem, as polícias, a saúde pública – e suas práticas efetivas. Um aluno meu está fazendo um estudo sobre o trato da AIDS na rede pública. Em tese, tudo vai bem. Na prática, os doentes estão comendo o pão que o diabo amassou. Mas, se você olhar para instituições na Alemanha ou mesmo nos EUA, encontrará o teor moral no atendimento. Ou seja, o enfermeiro atende bem para que ele próprio se sinta bem. Aqui, não… O ser humano é uma Ferrari, mas, no Brasil, achamos que é um patinete.

Padecemos de um vazio moral?

Sim e há muito tempo. Mas, pela primeira vez ele está sendo arejado. Muita coisa feia poderá ainda emergir.

O carnaval é vendido como a maior festa do mundo. O futebol, o melhor do planeta. A brasileira, a mais linda. Temos de fabricar superlativos a nosso respeito?

O ‘mito’ da mulher mais bela do mundo, bem como outros superlativos, o melhor futebol, o melhor carnaval, e, com um orgulho inconsciente e perverso, o país mais injusto, tudo isso pertence ao mesmo cabedal de clichês impostos pela lógica narcísica de louvar e defender a qualquer custo a própria miséria. Isso, em lugar de tentar a árdua tarefa de sair dessa miséria, proposição que só pode vir por um ideário que transcenda a realidade imediata.

Brasileiros que hoje reclamam ao ver a imagem do Brasil sendo ‘conspurcada’ são os mesmos que assistem passivamente às abordagens sexuais de turistas, estrangeiros ou não, sobre meninas, nas praias do País. Como entender esse duplo comportamento?

Se nos levássemos a sério, mandando para o inferno os olhares estrangeiros, não haveria instituições de defesa do menor e da pobreza que não tivessem efeito. Queremos polícia, e polícia temos. Queremos exportação, e exportação temos. Mas dizemos que queremos igualdade e justiça, e nada temos. Porque não estamos nem ideal nem psiquicamente preparados para renúncias e deveres implicados no querer alguma coisa coletiva ‘a sério’. Por isso a infância e a juventude seguem desamparadas. Ao mesmo tempo em que temos Febem e congêneres, temos os filhos da classe média abandonados, dentro de casa, em frente à televisão.

Há uma música que diz: ‘Nem toda brasileira é bunda’. Isso sinaliza uma reação crítica?

Não. A maioria da classe média urbana brasileira convive com o opróbrio moral de falar uma coisa e fazer o contrário. Esse, creio, é o teor sociológico de ‘ser bunda’. Parece que agora o Brasil está querendo acertar as contas com a sua consciência moral, o que é maravilhoso. Mas recomendo cautela, porque já ‘pareceu’ assim antes. Pensemos no desvelamento da mentalidade brasileira apresentado em Raízes do Brasil, por Sérgio Buarque de Holanda. Este livro genial é precedido, contudo, de uma inacreditável introdução na qual o autor afirma que tudo o que descreve já pertence ao passado. E, como sabemos, não é verdade. A mentalidade colonial permanece em muitos aspectos, de modo evidente, dando forma à atuaçãode nossas instituições e nosso pensar.

É de Sérgio Buarque a análise da visão edênica do Brasil, o paraíso selvagem, puro. Até que ponto esse mito turva o nosso olhar?

Uma expressão brilhante em sua pergunta: a idéia de ‘visão turva’. O mito do Éden tropical, bem como outros superlativos, serve para turvar a visão da relação humana básica, sobre a qual nossa cultura formou-se. Relação à qual escravos, senhores e libertos devem, paradoxalmente, a própria vida. Falo da escravidão como a mais radical forma de ignorar a existência do Outro.

Ainda falando de Sérgio Buarque, é inacreditável que muitos acadêmicos não tenham compreendido a idéia de ‘homem cordial’, apresentada em Raízes do Brasil. Passou-se para frente a equivocada noção do brasileiro como um indivíduo tolerante, acolhedor…

E o sentido profundo da ‘cordialidade’ é outro: uma emocionalidade imediata não marcada pelo contato real, pelo contato de um ideário ético transcendente, que permita e premie psicologicamente a ambição coletiva de construir uma boa sociedade para todos. Essa emocionalidade cordial – vem de cordis, coração, paixões, enfim – serve menos para explicar a gentileza e a hospitalidade, do que para entender a violência endêmica, o latrocínio por muito pouco, a corrupção e a desonestidade vistas como modalidades da ação que ignora o Outro. Sempre haverá corruptos. Mas haverá muito mais sempre que não fizer mais sentido a idéia de ‘ser bom.’

Os alemães há décadas convivem com uma filmografia que os coloca numa situação incômoda ao rever Hitler, o expansionismo nazista, o holocausto. Por que eles não reclamam de humilhação ou alimentação de clichês?

Os alemães me parecem formar um útil contraponto. Seu ideário ético-transcendente, levado a sério, permitiu-lhes um piso valorativo comum a todos os grupos sociais, difundindo a ‘sabedoria social’, já que todos são visíveis enquanto credores de obrigações morais. Isso fez com que aprendessem a resolver conflitos. Nossos conteúdos culturais arraigados ainda não incluem tal sabedoria. Digo ainda, porque ela, evidentemente, está querendo se formar. A redemocratização desde os anos 80 e até mesmo o governo Lula são a tradução desse desejo de aprendizado. É difícil vencer a turbidez da visão. Porém, é difícil, mas não impossível, renascer.’



TELEVISÃO
O Estado de S. Paulo

O videoclipe perde a vez

‘Apoiada na certeza de que a internet hoje atende à demanda por música, a MTV Brasil reverte o princípio de sua sigla. Para Multishow e Play TV, o som ainda rende

Os videoclipes são coisa do passado para a MTV Brasil. O que significa que xodós da emissora, como o longínquo programa Disk MTV, estão com os dias contados e serão deletados da grade a partir de janeiro. Clipe agora só a serviço dos programas ou para os insones, preenchendo a programação da madrugada. O anúncio feito esta semana causou alvoroço entre imprensa, artistas, produtores e até concorrentes. Afinal, a emissora musical que reinou absoluta no segmento durante anos e construiu sua marca graças aos clipes estaria cuspindo no prato em que comeu?

A oposição acredita que sim. A direção da MTV, no entanto, afirma ter outros planos para emissora, coerentes com as novas necessidades da audiência e as facilidades que a vida digital empreenderam ao cotidiano dos jovens. ‘Se as pessoas confundirem ausência de videoclipe com ausência da música vai ser uma confusão’, disse o diretor-geral da emissora, André Mantovani. ‘Clipe e música não são a mesma coisa para nós. A música é ainda mais importante.’ Segundo ele, o que reforçaria esse compromisso com a música é a futura rádio da MTV Brasil, que, vingando de fato, será a primeira da família a estar no dial, com programação, locução e formato comercial diferenciados. Até hoje, as MTVs pelo mundo hospedam suas rádios na internet.

E como hoje em dia a MTV não é mais só televisiva, a direção aposta em outras ferramentas além da TV, para cultivar boa relação com o público jovem: como o celular, a revista e a internet. Lançado este ano pelo canal, o site Overdrive (www.mtvoverdrive.com.br) mantém-se abastecido com vídeos dos mais variados e, segundo levantamento, é o segundo Overdrive mais acessado, perdendo apenas para o site feito pelos americanos.

Mais informação

A partir do início do ano, o canal emplaca seu novo conceito de fazer MTV, com mais programas e tendo em vista o telespectador que, segundo pesquisas, vê nela fonte de informação. Esse fato fez a direção repensar melhor seus conceitos. Mantovani admite que eles não tinham idéia de como a audiência leva a sério a emissora. Mais do que imaginavam. ‘Para ela, TV é educação.’ Assim, entram em jogo programas como Debate, com apresentação de Cazé, uma espécie de Barraco MTV mais organizado.

Outra proposta é dar mais espaço para os músicos, para que mostrem seu trabalho, suas músicas preferidas, dêem entrevista. A modelo Daniella Cicarelli bem que ensaiou uma ida para a Record, mas acabou renovando contrato com a casa. Em 2007, ela continuará no comando do Beija Sapo, uma das melhores audiências, e, de quebra, ganhará um novo programa, voltado para o universo da moda.

Enquanto as novas atrações não estréiam, em março, os telespectadores já devem perceber algumas mudanças com a programação de verão, que começa a ser exibida em janeiro. Nessa grade, destacam-se programas como Casal Neura, estrelado por Cazé e Marina Person, e Jornal MTV no Verão, com Léo Madeira e a bela Ana Luiza Castro, a nova aquisição da emissora. Ao que tudo indica, se Ana Luiza fizer direitinho a lição de casa de verão, tem grandes chances de ficar. Além disso, o programa MTV.doc, voltado para documentários, já dará sinais de vida.

Para a direção da MTV, o grande desafio nesse momento é olhar para si com olhos da audiência, e não com os olhos de quem comanda o canal. ‘Senão, vira saudosismo. Esse modelo de TV que se continua fazendo é ultrapassado, já era’, afirmou Mantovani. ‘Não é mais papel social nosso passar videoclipe. Vamos prestar serviço melhor falando do clipe, do artista, aprofundando no trabalho e vida dele. O clipe é pobre nisso.’

A concorrência, hoje formada pela tríade PlayTV, MixTV e Multishow, discorda. Em nota divulgada pelo Multishow na quinta, comemorava-se o ‘sucesso dos clipes em sua programação’. ‘No mês de outubro, na faixa entre 19 horas e 21h15 (horário do TVZ, Top TVZ e TVZOkê), o canal foi líder de audiência na TV por assinatura, tanto no target 18-34 anos como AB 18-34 anos’, ressaltou o comunicado.

Diretor de produção e programação da PlayTV, André Vaisman também destacou os bons índices obtidos por sua emissora, quando os clipes estão no ar. ‘A MTV tem responsabilidade nesse mercado musical, de ajudar os artistas e agora os deixa’, disse ele, que avisa à ex-casa, onde trabalhou durante anos, que concorrência é saudável.’



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‘Só clipe não dá audiência’

‘Diretor de programação da MTV, Zico Góes esmiúça ao Estado os argumentos da reforma.

Quais serão as mudanças na MTV?

Dessa vez, diferente do que aconteceu em 1999, a gente não vai sair do zero. Naquela época, éramos cool, mas o resto era tudo ruim. Não tinha dinheiro, não tinha audiência, não tinha nada. Detonamos tudo e começamos do zero. Agora é mais uma questão de posicionamento da MTV em relação ao que está acontecendo no mundo, no que a gente acredita e no que a audiência quer. Essa mudança é mais conceitual e tem alguns pilares. O primeiro de todos é que não somos mais um canal de TV, é uma constatação interna e externa. A MTV, como canal de TV, fez sentido como integração do jovem com a música até anteontem. Agora não faz mais. O jovem quer outros formatos de consumir MTV, assim como ele tem consigo outros formatos de consumir música, relacionamento. Não estamos dizendo que a TV está indo para as cucuias. A audiência média da TV aberta e fechada, até de rádio, está estável, com internet ou sem. O jovem sabe o que quer em cada lugar, na tevê, no rádio, na internet.

Haverá integração entre esses meios?

A gente já usa muito a internet, chama o site Overdrive dentro da programação e o aproveita para testar formatos, pois dá mais liberdade. Está nos nossos planos aumentar essa integração e também a quantidade de conteúdo para cada uma das mídias. Estamos com a história de lançar uma rádio, que está em negociação.

Como surgiu a idéia da rádio e como ela será?

Foi meio natural. Claro, a MTV é o filtro, sempre um agregador de conteúdo. É uma marca. Não temos mais clipe no ar, mas a gente tem música na rádio, selecionada pela MTV. Assim como a TV, a rádio está cada vez mais pasteurizada. A gente quer ser diferente.

O que o telespectador da MTV quer ver no canal?

Acho que não tem essa resposta. A gente até faz essas perguntas nas pesquisas, mas o telespectador não sabe muito bem o que quer. Acho que o que ele quer ver na TV são formatos de televisão e aí entra aquela história: cada macaco no seu galho. Formato de TV é contar uma boa história, com começo, meio e fim. Estamos literalmente investindo em histórias: séries de ficção, reality, desenhos animados. O telespectador tem falado que quer informação. É grande consumidor de música, tem gosto específico, mas quer saber de tudo, mesmo que não seja do gosto dele. Então, vamos prover isso a ele.

Uma grande novidade será a faixa de documentários, de segunda a sexta, produzidos por nós. Outra parte da audiência quer conversa. As meninas querem debates, a gente vai fazer o programa Chá das Minas. Vamos criar um programa de debate mais sério, existe demanda por isso. Há um pouco de nostalgia do Barraco, mas querem algo mais organizado.

E como fica a música nesse contexto?

O consumo de música mudou e não estou falando só de comprar. As pessoas estão consumindo pela internet. É o mercado da escassez versus o mercado da abundância. Antes, você ia à loja e na prateleira só cabia um número x de coisas, que são as que mais vendem. As que vendem menos não vão para a prateleira. Na internet é diferente, tudo aquilo que não é gosto comum e que não cabe nas prateleiras está na internet. É o mercado da abundância.

A internet possibilita também que se tenha acesso a um clipe rapidamente. Como a MTV se posiciona em relação a isso?

A gente vai ter mais espaço para músicos no ar, mas vamos deixar de rodar videoclipes. Alguns programas vão morrer, como o ícone da MTV, o Disk. O consumo de clipes, as listas são muito mais imediatas nesse mundo digital do que no ar. O jovem não quer ver três minutos de clipe, depois mais três. Ele quer ver televisão, uma história bem contada. Clipe tem no You Tube, no Overdrive também. O programa de clipe, com VJ apresentando, esse morreu. Eles estarão na madrugada, porque preciso manter a programação 24 horas no ar. Na programação, só estarão lá a serviço do formato dos programas. Só clipe não dá audiência. Exibimos o show do U2, ao vivo, há seis anos, e não deu audiência. Nego não fica em frente à TV para ver show, eu duvido. O grande valor da MTV é que ela pode se modificar, porque o público dela se modifica. Ela não precisa acabar.

Mas não havia um projeto de lançar um canal MTV Brasil só de clipes?

Sim, mas diante disso tudo, não tem sentido mais fazer esse canal. Já descartamos a idéia.’



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