Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O filme que está passando não empolga. Devia

Nos telões de TV, também nas telinhas de celulares e tablets, nos blogs e portais da rede, nos monitores dos computadores, no Facebook, no YouTube, nos noticiosos das rádios e na capa dos lânguidos jornais em berço esplêndido: o filme está em todas, mas não arrebata.

Cenas rápidas, impactantes, sequências vertiginosas, roteiro alucinante, esta produção não está sendo assimilada suficientemente. Nas cenas de horror todos morrem de rir, o que se pretendia como comédia é trágico e os momentos edificantes, rigorosamente demolidores.

Que filme é este? Um blockbuster com todos os recursos tecnológicos, escrito pelos melhores roteiristas, celebridades às pencas, anunciado como imperdível e, no entanto, anódino. O que está passando nas telas não é bem um filme, mas um extenso seriado, mais comprido do que a Novela das Nove ou a Muralha da China. Original (mais do que Boyhood), bem concebido e encenado. O único defeito é o título. São muitos: alguns o chamam “A Marcha do Tempo”, outros preferem “O show deve continuar”, “A força do destino”, “A Última Guerra”, “Crepúsculo dos Deuses”, “Tempos Modernos”, “Primeira Página”, “Rebeldes sem causa”, “Abutres”, “Revolução Traída”, “Todos os Leviatãs se parecem”, “Pequenos ditadores”, etc etc. O melhor, “A incrível história do mundo que encolheu”, foi embargado pelos produtores: negativo, pessimista, ninguém o assistiria.

É o filme dos filmes, em HD, 3D, cores exuberantes, trilha sonora sublime, nós no elenco e, atrás das câmeras, o autoengano levado à enésima potência. Não obstante, condenado eternamente à condição de sem-Oscar. O enredo deveria ser apaixonante, porém, nenhum dos três jornalões de terça-feira (24/2) conseguiu reproduzi-lo ou, pelo menos, oferecer um esboço: as 34 páginas do Globo, as 46 do Estadão e as 32 da Folha não conseguiram captar o inglório e acabrunhante épico nem a sublime tragicomédia da vida cotidiana que protagonizamos com tanto empenho.

Uma nova sessão de estupidez

Setenta anos depois do fim da 2ª Guerra Mundial, a Europa está novamente de uniforme e armas engatilhadas preparando-se para nova sessão de estupidez com a recém-nascida Ucrânia e sua velha vocação reacionária no papel de pivô. Sete décadas depois de extinto, o nazi-fascismo reaparece com força total falando húngaro, alemão, russo, ucraniano, francês, inglês, árabe e até hebraico.

Cerca de 80 anos depois dos sangrentos “Processos de Moscou” e 75 depois do assassinato de Leon Trotsky, as sobras do monolítico império bolchevique estão sendo partilhadas por notáveis figuras do calibre de Nicolas Maduro, Cristina Kirchner, Kim Jong-un e Vladimir Putin (que acaba de receber uma cantada pública da ultradireitista francesa Marine Le Pen – Veja, edição 2414, Páginas Amarelas). Aliás, os dois compõem um par perfeito, um tórrido romance entre o caudilho russo e a candidata do caudilhismo francês daria ao filme uma picardia insuperável.

A nova guerra mundial (3ª ou 4ª ?) já está em curso desde 2001 – difusa, móvel, imprevisível, com armas de destruição em massa impensáveis. Deuses, profetas e fanatismo – nenhum míssil ou bomba os supera em matéria de letalidade. A guerra está instalada na África Ocidental, Magreb, Oriente Próximo e Médio, Ásia Menor e Central. Mas outras guerras, surdas, atrás das linhas de frente, estão sendo ativadas rapidamente. A Guerra Total foi substituída pela Guerra Permanente e, mesmo assim, este filmão não impressiona. Não mexe com a plateia.

Depois do horror do Holocausto europeu, do impiedoso apartheid sul-africano e do racismo contra afrodescendentes tanto no Velho como no Novo Mundo, os preconceitos e a xenofobia voltaram incólumes e até mais agressivos graças à potente combinação com o patriotismo. As vitórias e o prestígio intelectual de Nelson Mandela e Barack Obama não conseguiram esvaziar o rancor arcaico e selvagem da diferenciação entre humanos.

Energúmenos são fabricados com incrível velocidade e isso não parece impressionar as audiências. Acostumaram-se. Nesta exuberante América Latina, utopias continuam destroçadas pelas distopias, libertários transformam-se rapidamente em autoritários, ideologias redentoras do século XIX já no século XXI estão transformadas em manuais de opressão. A suposta Era da Informação e da Transparência produziu mecanismos insuperáveis de desinformação e impunidade. As indústrias do roubo e do crime organizado não produzem estatísticas, não entram no PIB, caso contrário bateríamos a China. Corrupção é assunto batido, multipartidário, universal, todos a praticam, não existe decência – isso talvez explique o desinteresse pelas inumeráveis sequências de assalto ao erário.

Importar-se dá câncer

Com tanta palpitação, suspense, variedade, tantas cenas de amor e desamor este filme não empolga. Ou empolga apenas um bando de idosos exigentes. Nas plateias, as pessoas ruminam barricas de pipocas e mantêm-se abúlicas. Adoram ir levando, faz bem à alma.

Estas insignificâncias conseguiram emergir no noticiário dos últimos dias: o presidente da OAB meteu a mão em dinheiro que não lhe era devido enquanto defende os advogados como agentes da Justiça e um juiz manda apreender carros de luxo de um réu-milionário e sai pilotando um deles para exibir o poder da justiça.

O filme que está passando nas telas deveria espantar, sacudir, incomodar ou revoltar. Hoje em dia nada surpreende, angustia, aflige ou atormenta. Importar-se dá câncer. Serenados por um contagiante déjà vu pairamos em estado de graça. Ao nível do mar, sem incensos, alcançamos o nirvana e uma beatitude só possíveis em longas meditações nas montanhas perto dos céus.

Algo misterioso, insólito, deve estar ocorrendo na cabine de projeção. Trocaram o filme? Então parem as máquinas, esta superprodução não foi feita para passar despercebida. Cortem mais algumas cabeças na equipe para que os sobreviventes tornem-se mais criativos e façam deste longa o espelho do nosso tempo. Será um sucesso.