‘Cuidado! Mantenha o frasco vedado, substância altamente tóxica’. Mesmo in vitro, a violência é perigosa. Manuseada por robôs, à distância, com luvas de borracha e conservada na geladeira, a violência pega. O contágio não se dá pelo contato direto, aspiração ou pela visão.
A violência se propaga pelas palavras. Se não forem descontaminadas, as palavras potencializam os seus efeitos. A violência verbal pode vir antes ou depois da violência física, não importa, são contíguas, causais, inextricavelmente associadas.
O triângulo das Bermudas onde desaparece nossa lendária cordialidade reaparece agora composto por três nomes – marcas, melhor dizer – transformadas em poucas semanas em matéria altamente explosiva: Huck, Rolex, Ferréz.
Mencionar uma delas – em qualquer circunstância – e não incluir as demais – em qualquer circunstância – equivale a acionar um detonador. Ou a fogueira das vaidades. Como descontinuar este circuito de irracionalidades movimentado justamente sob o pretexto de buscar a razão? Como reverter a exaltação, o canibalismo e a compulsão antropofágica?
Única saída: evitar a criminalização e a culpabilização, fechar este farsesco tribunal montado apenas para fazer barulho. Ninguém tem culpa, nenhuma das partes – ou marcas – é responsável pela selvageria. Alguém precisava desabafar.
O relógio, como um dos termos do trinômio de ódios, não tem culpa de ter sido convertido em totem. A celebridade roubada, assim como a celebridade que justificou o roubo, são igualmente inocentes, ambas possuídas pela mesma sede de justiça. São partes da escaramuça, incapazes de pedir silêncio e oferecer juízos.
Examinar os processos
Mas o processo, o acelerador desta alucinação, este deve ser examinado com atenção, caso contrário estaremos permitindo a multiplicação do rancor e perenização das suas conseqüências.
Para evitar palavras deflagradoras de novas animosidades e bordões capazes de despertar facções ainda não mobilizadas, os fatores do sistema serão nomeados apenas em notas de rodapé. Como os editores treinaram os leitores a detestar os rodapés, estes ganharam imunidades. Mas a tônica deste sistema1 tem nome, endereço, RG e CPF: simplificação.
E a simplificação ideológica não pode ser omitida como responsável pela letalidade do atual surto de ressentimentos. De tanto adjetivar o adversário como ‘fascista’ estamos facilitando a assimilação do fascismo em nosso cotidiano. Ninguém percebeu o perigo: quando for necessário enfrentar efetivamente o fascismo ele parecerá inofensivo. O país da piada pronta cansou de fazer piada, agora burila frases de efeito.
Não adianta culpar os avanços tecnológicos e a despolarização do processo informativo2. Se o conflito tivesse ocorrido há 10 ou 12 anos, a violência se manifestaria pelos condutos tradicionais. A tal da ‘modernidade’ culpada de tantos malefícios nada tem a ver com brutalidade exibida pelos espancadores. A luta vale-tudo da Era Digital não difere da luta vale-tudo da Era do Rádio.
O ringue onde se exibem os enfezados3 é de papel impresso, foi na primeira página de um dos maiores jornalões brasileiros4 que apareceu o desabafo da celebridade agredida5, foi na sua seção de cartas que começou o confronto equalizador entre linchadores e anti-linchadores. Neste mesmo fórum6 monetizou-se o crime através da marca do relógio7, lá também desembarcou a celebridade justiceira8.
O desfile prosseguiu nas páginas de abertura do maior semanário brasileiro9 e, na semana seguinte, obedecendo à lógica progressiva da Lei de Linch (‘mata! esfola!’), outro semanário de grande circulação10 resolveu explorar novo veio de emoções através de um chamariz diferente: na boca da celebridade vitimada, a mais patética11 pergunta jamais aparecida numa capa de revista: ‘Ele merecia ser roubado?’
Ninguém merece ser roubado, nem mesmo o ladrão.
A única pergunta pertinente e que a esta altura nenhum dos três protagonistas teria coragem de fazer (exceto o relógio) é a seguinte: como posso contribuir para o desarmamento dos espíritos? Ou esta: meu nível de onipotência não está levemente exagerado?
Depois do lânguido feriadão, o jornalão, a serviço do seu narcisismo12, foi à praia vizinha pedir reforços13, seus mosqueteiros estão esgotados. Novo ingrediente na salada: a culpa agora não é do Rolex, é da Marilena Chauí.
Esta galeria de indignações impressas14 não é debate, não é democracia, não é pluralismo, não é exercício de tolerância iluminista15. É a simplificação a serviço da exacerbação coletiva, o indivíduo empenhado em virar malta. Perdigotos a serviço da violência. Ilusão de participação. Culto ao escândalo. Civismo anti-cívico. Banalização do mal. Delírio – em vez do Bope, Ibope.
1.
Mídia, do latim media2.
Internet, banda larga, etc.3.
Atenção para a etimologia: enfezado vem de fezes, quem é dominado por raivas precisa purgar-se no sanitário.4.
Folha de S.Paulo, um jornal a serviço do Brasil.5.
Luciano Huck, apresentador de TV.6.
Jornal citado, idem.7.
Rolex, marca de relógio kitsch, detestada na Suíça.8.
Reginaldo Ferreira da Silva, o Ferréz, autor.9.
Veja, páginas designadas injustamente como ‘amarelas’ (cor clássica do sensacionalismo) que, no Brasil, virou marrom.10.
Época11.
Patética ou pateta, o leitor escolhe.12.
Folha de S.Paulo, 15/10/07, página A-313.
Reinaldo Azevedo, blogueiro e articulista de Veja14.
Convém ler, de Isabel Lustosa, Insultos Impressos, a guerra dos jornalistas na Independência, 1821-1823 (Cia. das Letras, 2000)15.
Aufklärung, do alemão, Esclarecimento, a principal função da imprensa.Em Tempo, por Deonísio da Silva:
Dines, você escreveu no OI desta semana, em seu belo artigo O grande circo da violência: ‘Atenção para a etimologia: enfezado vem de fezes, quem é dominado por raivas precisa purgar-se no sanitário’. É uma licença e tanto, mas fezes veio de faex, cis, lama, excremento, merda e mais alguns sinônimos. Enfezado, embora se pareça com isso, tem outro étimo, bem diferente: o latim infensatum, cheio de defesas exageradas, hostil, particípio de infensare, ligado a defendere (a raiz de estas e de outras palavras assemelhadas o étimo -fend-). O que pode ter te levado a esse engano é um erro de grafia: enfezado deveria ser escrito ‘enfesado’, como fizeram com ‘defesa’. Não sei o que este ‘z’ está fazendo aí, mas que é esquisito, é. O José Pedro Machado tem o verbete ‘fez’ e não registra ‘enfezado’. Abona ‘fezes’ com Santo Agostinho: ‘me tire dos afundamentos das águas e do lago da mizquindade e do lodo das fezes’. É barro mesmo, e não merda.
Refiticado está.