Um promotor federal denuncia a presidente de um país ao sul do Equador por ação de encobrimento de um grupo de terroristas iranianos em seu próprio país. O promotor preparava-se para dar mais detalhes perante uma comissão parlamentar. Mas, 24 horas antes dessa reunião aparece morto com um tiro na cabeça na jornada em que seus guarda-costas haviam desaparecido de seu prédio, deixando-o sozinho. O governo afirma “é suicídio”. A imprensa desconfia. A oposição, idem. E as pesquisas indicam que de 75% a 80% da população também suspeitam que o promotor teria sido assassinado.
No meio da semana, o governo muda de ideia e sustenta categórico: “Foi assassinato”. De quebra, afirma que a morte é um complô do qual participou o próprio morto e a oposição – junto com a imprensa não-alinhada – para desestabilizar o governo e desviar a atenção sobre o boom turístico no litoral neste tórrido verão.
O anúncio do complô – que não é denunciado na Justiça pelo governo – é feito pelo Facebook e um blog pela presidente da República, que não aparece em público há mais de um mês e cujas últimas imagens publicadas são as dela levando seu poodle – que evoca um conto do escritor Vladimir Nabokov – no Boeing presidencial para um passeio nos confins meridionais do país, longe do calor da capital nacional.
O assunto já tem elementos suficientes para ser o roteiro para um filme de Pedro Almodóvar com roteiro de Federico Fellini e produção do papa do cine B, Roger Corman.
Mas os elementos citados não pertencem à imaginação de um roteirista delirante. É a realidade da Argentina desde meados de janeiro.
Outro fator, que transforma esta história digna dos tempos de Maquiavel e a família papal Borgia (ou de Macbeth, de William Shakespeare) em uma versão mais à moda jagunça terceiro-mundista – tipo “spaghetti western” – foram as circunstâncias envolvendo a saída do jornalista Damián Pachter às pressas da Argentina.
O jornalista ameaçado de morte
Na noite do domingo (18/1), ele foi o primeiro em alertar, por intermédio de sua conta de Twitter, que Nisman estava morto em seu apartamento. Pachter tinha informações de uma privilegiada fonte interna do governo Kirchner. Durante a semana Pachter percebeu que estava sendo seguido. Recebeu ameaças de morte.
“Devo escolher o exílio por medo a ser assassinado”, explicou a jornalistas amigos. “Eu estraguei a operação deles”, disse Pachter, em relação a uma suposta tentativa do governo para acobertar a morte de Nisman com um mise-en-scène de suicídio.
Pachter, jornalista de jornal impresso, cuja cara não era conhecida popularmente, foi no sábado (24/1) ao aeroporto para deixar o país com a roupa do corpo, pouco dinheiro e uma maleta pequena. “Não posso mais voltar ao país, pelo menos até o final deste governo”, disse Pachter a dois amigos que o levaram até o embarque para garantir que nada lhe acontecesse.
Mas, pouco depois, o destino secreto de Pachter – que nunca havia sido indiciado ou chamado a inquérito – tornou-se público quando a conta oficial de Twitter da Casa Rosada, o palácio presidencial argentino, informou, com luxo de detalhes, que o jornalista (ameaçado de morte) havia partido para Montevidéu, Uruguai.
Além do Twitter, a maior agência de notícias da Argentina, a estatal Télam, colocou a imagem da tela da companhia aérea com os horários de chegada de Pachter à capital uruguaia e todos os dados da passagem aérea. Isso indicou que Pachter estava sendo espionado pelo governo Kirchner. E indicou que a Casa Rosada não estava preocupada com a opinião pública ao tornar evidente esta espionagem sobre um civil.
Assustado, Pachter, ao chegar em Montevidéu, pegou outro avião, para Israel, já que ele – judeu argentino – também tinha passaporte israelense. O governo Kirchner, imediatamente – e que afirma não estar espionando pessoa alguma – também informou que Pachter havia rumado para Israel.
Associações de defesa do jornalismo e partidos de oposição protestaram, já que Pachter havia sido colocado em situação vulnerável. De quebra, divulgar os dados de uma passagem aérea privada é ilegal.
A partir deste ponto a situação sai do roteiro de Fellini com produção de Roger Corman e fica cada vez mais com tom de “spaghetti western”, também chamado de “bang-bang à italiana”.
Denunciador morto
No dia 18 de janeiro apareceu, com um tiro no parietal direito, o corpo morto do promotor federal Alberto Nisman, que havia denunciado a presidente Cristina Kirchner por ter ordenado, em 2012, o encobrimento da participação de altas autoridades iranianas no atentado contra a Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA), em 18 de julho de 1994. Em troca deste pacto de impunidade a Argentina conseguiria suculentos acordos comerciais com o Irã.
Dias depois Nisman apareceu morto em seu apartamento. Imediatamente chegou à residência, em Puerto Madero, o secretário de Segurança, Sergio Berni, homem de confiança da denunciada pelo promotor, isto é, a presidente Cristina.
E aí começam diversas irregularidades, das quais aqui coloco um pequeno pout-pourri (a lista é bem maior e cresce a cada dia).
1. Nisman tinha a proteção de dez guarda-costas. No entanto, nenhum deles estava posicionado na frente do apartamento onde morava, no 13º andar do edifício Le Parc, em Puerto Madero. No fim de semana de sua morte os homens estiveram ausentes desde a véspera. Chegaram às 11h30 de domingo à calçada na frente do prédio.
2. Nisman havia solicitado aos guarda-costas que às 11h30 estivessem prontos para levá-lo a um determinado lugar. Mas na hora marcada Nisman não apareceu. Paradoxalmente, esperaram duas horas até telefonar ao promotor, que não atendeu. Às 14h telefonaram à secretária de Nisman, que os colocou em contato com a mãe do promotor. Os guardas foram buscar a mãe de Nisman do outro lado da cidade e a levaram até o apartamento com a sua chave.
A mãe de Nisman chegou com os policiais às 17h30. No entanto, subiram às 19h ao apartamento. Segundo eles, não foi possível abrir a porta e chamaram um chaveiro, alegando que as portas estavam trancadas por dentro. Não pensaram derrubar as duas portas. Nisman poderia estar morto, passando mal ou sequestrado. Os homens da Polícia Federal optaram por recorrer à prosaica atitude de chamar um chaveiro. Este chegou depois e abriu a porta. Na quarta-feira (21) o chaveiro revelou que a porta de serviço do apartamento “estava fechada, mas sem trancar com chave… qualquer pessoa poderia ter aberto essa porta… coloquei na fechadura a chave da mãe [de Nisman], dei um empurrãozinho… e abri!”.
3. Na segunda-feira (19) a polícia afirmou que o apartamento tinha apenas duas portas. Mas na quarta-feira as forças de segurança encontraram uma terceira porta (em um apartamento de apenas 84 metros quadrados, que havia sido supostamente vasculhado em sua totalidade). Essa porta dava acesso a um corredor que ligava ao apartamento vizinho. No corredor os investigadores descobriram uma pegada e uma impressão digital recente.
4. Nisman tinha posse legal de uma arma calibre 38. No entanto, teria pedido uma arma emprestada, de calibre 22, a um assessor, Diego Lagomarsino. Com esta arma, de acordo com a Justiça, suicidou-se.
5. A promotora Viviana Fein, encarregada da investigação sobre a morte do promotor federal Alberto Nisman, afirmou na segunda-feira que era um suicídio. Na terça-feira, admitiu que não existiam vestígios de pólvora na mão do colega. “Lamentavelmente, deu negativo, mas isso não descarta que ele tenha feito o disparo”. O advérbio de modo – “lamentavelmente” – não passou despercebido. No sábado, Fein afirmou que havia sido suicídio e que o tiro fora dado a 1 centímetro de distância. Fontes extraoficiais indicaram que teria sido de 15 a 20 centímetros. Mas a versão oficial da promotora é de 1 centímetro.
6. Nos primeiros dias a presidente Cristina Kirchner declarou que não entendia como uma pessoa com a vida “confortável” havia se suicidado. Outros integrantes do governo sugeriam que o promotor estava “deprimido”. Seus amigos e jornalistas que o entrevistaram na véspera da morte indicam que ele estava “entusiasmado” e “animado” com o detalhamento que iria fazer da denúncia perante o Parlamento.
7.Nisman não deixou cartas de despedida. Mas, em cima da mesa, deixou uma lista de supermercado para sua empregada doméstica, indicando os produtos que ela tinha que comprar na segunda-feira.
8. O secretário de Segurança Sergio Berni chegou à cena da morte às 23h08 de domingo (18) e montou de forma célere um esquema de segurança ao redor do prédio de Nisman. Ele impediu durante meia hora a entrada dos médicos do Sistema de Atenção Médica de Emergências (SAME). A promotora Fein disse que não considerava importante pedir o depoimento de Berni. Fein tampouco interrogou os vizinhos de Nisman.
9. Somente na sexta-feira (23) a promotora Fein solicitou os vídeos das câmaras de segurança do prédio e dos arredores.
10. Na sexta-feira também foi colocado sob proteção da Gendarmería o assessor Diego Lagomarsino, a pessoa que havia entregue – segundo ele próprio declarou – a arma a Nisman. Elemento de alta importância para a investigação, Lagomarsino passou cinco dias sem proteção policial alguma.
11. O governo afirma que não estava espionando Nisman. Mas, o governo foi quem informou que o promotor voltou às pressas da Europa e, em Madri, havia deixado sua filha de 15 anos sozinha na sala VIP enquanto esperava que sua ex-mulher, que estava em Barcelona, fosse buscá-la. Nunca houve uma explicação sobre como o governo tinha tanta informação sobre o que Nisman fazia na Europa em suas férias.
Idas e vindas
Os jornais governistas – e os canais de TV alinhados com o governo (a grande maioria) – defenderam enfaticamente a tese do suicídio nos primeiros dias, sugerindo que qualquer outra interpretação constituía uma conspiração proveniente do exterior em aliança com colaboracionistas locais.
O promotor morto, sem poder se defender, era acusado nessa mídia de ter contatos muito fluídos com a embaixada dos Estados Unidos, segundo o Wikileaks. O próprio Wikileaks, nos primeiros telegramas revelados, anos atrás, indicava que a presidente Cristina Kirchner tinha problemas de estabilidade mental e que o ex-presidente Néstor Kirchner era um psicopata. Logo, esses telegramas do Wikileaks costumam ser esquecidos. O ‘Wiki’ pode ser uma arma de dois gumes.
O governo sustentava que as denúncias de Nisman não tinham fundamento algum. Isso era dito mesmo antes que elas tivessem sido apresentadas (dias depois da morte do promotor) por ordem da Corte Suprema de Justiça, a pedido do juiz Ariel Lijo. Esses comentários despertaram suspeitas sobre uma eventual espionagem prévia do governo Kirchner na documentação que Nisman iria apresentar contra a presidente Cristina.
O governo Kirchner sustentava que as denúncias de Nisman, que havia dito que tinha 961 CDs com gravações de grampos telefônicos das conversas entre aliados kirchneristas e os supostos agentes iranianos, eram uma total “falsidade”. Segundo o governo, as gravações não existiam. Mas, durante a semana, as gravações começaram a surgir e foram veiculadas pelos sites dos jornais que investigavam o caso Nisman, além de programas de rádio.
Na quinta-feira (22) de manhã os integrantes do governo tiveram que reconfigurar rapidamente o discurso, já que naquele dia a presidente Cristina declarou em uma extensa carta em seu blog que considerava que “não havia sido suicídio” (na segunda-feira afirmava que era suicídio). O Conselho do Partido Justicialista (peronista) reuniu-se rapidamente e – juntando em uma cerimônia as principais lideranças peronistas do país – emitiu um comunicado no qual acusava Nisman de “falso” e de participar de uma “conspiração” (sem citar os conspiradores) que pretendia “desestabilizar” o governo e “desviar a atenção do boom turístico nas praias argentinas neste verão”.
O texto, pérola para estudos posteriores em cursos de Comunicação Social, Relações Públicas e Ciências Políticas, foi lido por um peronista de terceiro escalão. Os governadores peronistas recusaram-se a ler o comunicado, temendo ficar vinculados à estratégia sui generis do governo sobre o agora “assassinado” promotor (e não mais “suicida”).
O governo tem baixa credibilidade, não somente pelos escândalos de corrupção, mas especialmente pela manipulação de dados do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec). Inflação, pobreza, desemprego e PIB são alguns dos índices considerados “camuflados” pelo governo por parte da oposição, economistas, sindicatos, a igreja católica, associações empresariais e partidos de esquerda real.
Nestas jornadas atribuladas e frenéticas há alguns pontos para destacar sobre a mídia:
** As guinadas nas investigações ocorreram na maior parte graças às investigações paralelas da mídia.
** Nenhum meio de comunicação não-alinhado com o kirchnerismo acusou a presidente Cristina de ter ordenado um eventual “assassinato” (esses meios indicaram que o governo foi responsável por não ter dado a adequada proteção policial a Nisman).
** A mídia alinhada com o governo insistiu que Nisman tinha vínculos com a embaixada americana com base em antigos telegramas do Wikileaks (outros telegramas do Wikileaks indicavam que a presidente Cristina tinha desequilíbrios mentais). Parte desta mídia, até o domingo (25), insistia na tese do suicídio, na contramão da própria postura da presidente Cristina.
Tradição em suicidados
Caso Nisman não tenha se suicidado, e sua morte tenha sido um plano para que ele parecesse “suicidado”, esta defunção integrará uma longa lista de “suicidados” peculiares da História argentina das últimas seis décadas.
>> Perdão pela letra – O primeiro da lista foi Juan Duarte, ex-vendedor de sabonetes que subiu de forma acelerada na vida quando sua irmã Eva (Evita) Duarte casou-se com Juan Domingo Perón, eleito presidente em 1946. Suas negociatas criavam constantes problemas para o cunhado presidente. Mas sua irmã sempre o protegia da raiva de Perón. No entanto, Evita morreu em 1952. Em 1953, “Juancito” apareceu morto em seu luxuoso apartamento com um tiro na cabeça. Ao lado, uma carta na qual alegava inocência. E pedia “perdão pela letra”. A letra não era dele. E a arma no chão era calibre 38, embora a bala dentro de sua cabeça fosse de calibre 45.
O governo Perón insistiu: “Foi suicídio”.
>> Canhoto post-mortem – Em 1998, o capitão-de-navio da reserva Horacio Pedro Estrada apareceu morto em seu apartamento da Rua Arenales, com a chave trancada por dentro. Ele era testemunha crucial no processo na Justiça sobre o escândalo de vendas ilegal de armas da Argentina ao Equador e à Croácia organizada pelo presidente Carlos Menem (o envio ilegal ao território croata de 6.500 toneladas de armas e munições, pelo valor de US$ 100 milhões).
Estrada apareceu morto sentado, com o torso sobre sua escrivaninha, em cima da qual havia uma pistola 9 milímetros. Mas a arma que havia provocado sua morte era a do revólver calibre 3.80 que estava caído no chão. O tiro foi dado ao lado da orelha esquerda, perto da nuca, de trás para a frente, e de baixo para cima. Mas Estrada não era canhoto. Nem acrobata ou contorcionista.
O governo Menem insistiu: “Foi suicídio”.
>> Para morrer de noite, óculos de sol – Em 1998 foi a vez de outro peculiar “suicidado” no governo do peronista Menem, Marcelo Cattáneo, a principal testemunha do caso de corrupção IBM-Banco de la Nación. Cattáneo, que era suspeito de ter sido o “distribuidor” dos US$ 21 milhões de subornos do caso, tinha medo de ser usado como bode expiatório e se dispôs a “contar tudo”. Dias depois desapareceu. Foi encontrado cinco dias mais tarde, pendurado de uma corda de náilon com um nós simples (e não o nó deslizante de uma forca), usando um óculos de sol (em plena noite). Dentro da boca, um recorte do jornal La Nación, de três dias antes, falando sobre seu desaparecimento.
O governo Menem insistiu: “Foi suicídio”.
Teorias, especulações sobre a morte de Nisman
Nesta última semana de frenesi político-criminalístico, surgiram as mais variadas teorias, algumas das quais tresloucadas. Listarei todas.
** Nisman suicídiou-se por depressão.
** Nisman suicidou-se porque havia percebido que sua denúncia não tinha fundamento.
** Nisman suicidou-se por motivos desconhecidos.
** Nisman suicidou-se por chantagens do governo Kirchner.
** Nisman suicidou-se por chantagens da oposição.
** Nisman foi assassinado por ordens do governo Kirchner.
** Nisman foi assassinado por alguém que queria agradar a presidente Cristina Kirchner ao eliminar um denunciante incômodo.
** Nisman foi assassinado por ordens de líderes do peronismo dissidente (não existem teorias sobre eventuais ordens de outros setores políticos, como se os únicos que pudessem ordenar um assassinato fosse algum representante das diversas facções peronistas).
** Nisman foi assassinado pelo Grupo Clarín, considerado “inimigo mortal” pela presidente Cristina e acusado de todos os males do país pelo governo.
** Nisman foi assassinado por espiões da Secretaria de Inteligência argentina em uma briga interna desse serviço (os mesmos espiões que foram designados pelo governo Kirchner nos últimos doze anos e que recebiam fundos cada vez maiores por parte da presidente Cristina).
** Nisman foi assassinado pela CIA (para prejudicar o governo Kirchner).
** Nisman foi assassinado pelo governo Nicolás Maduro (porque ele ameaçava os aliados governos da Argentina e do Irã).
** Nisman foi assassinado pelo Mossad (uma manobra intrincada para colocar a culpa nos iranianos).
** Nisman foi assassinado pelo Irã.
O cartunista Bernardo Erlich fez uma charge que resume o ceticismo dos argentinos sobre este caso sui generis. Ele apresenta as seguintes opões a escolher escritas em papeizinhos:
– Foi suicídio
– Não foi suicídio
– Foi suicídio induzido
– Foi morte
– Não temos a mais puta ideia
– É complicado…
Em seguida, colocar os papeizinhos em uma caixa. Misturar bem. E na sequência, em sorteio, retirar um papelzinho e o caso está resolvido.
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Ariel Palacios é jornalista, correspondente da GloboNews em Buenos Aires