O físico Rogério Cerqueira Leite escreveu um artigo na seção “Tendências/Debates” (pág. A3) da edição de domingo (31/8) da Folha de S.Paulo que merece reflexão por parte das pessoas preocupadas com a sorte do país (ver “Desvendando Marina”). Ele se referiu ao risco de, numa abordagem de ciência, recuarmos em direção a um pensamento obscurantista capaz de liquidar com as perspectivas de tirarmos partido da genialidade humana para amenizar desafios nacionais e sermos capazes de dialogar em igualdade de condições com as sociedades mais avançadas do planeta.
O temor de Cerqueira Leite é o fundamentalismo da candidata Marina Silva, concorrente ao Palácio do Planalto: mais especificamente o criacionismo – a ideia de o mundo ter sido criado ao longo de sete dias, numa época há pouco mais de 4 mil anos.
A data a que Cerqueira Leite se refere, na verdade, foi estabelecida em 1654 pelo bispo irlandês James Ussher. Ele consumiu toda uma vida de dedicação a estudos bíblicos. Ao final desse esforço – e depois de somar a idade de muitas gerações, incluindo a suposta longevidade de personagens como Matusalém – anunciou que o mundo foi criado em 26 de outubro de 4004 antes de Cristo (a.C.), precisamente às 9 horas da manhã.
Atualizando esses dados, o mundo (a Terra) teria agora – na concepção criacionista do bispo, partilhada por Marina e seus mentores religiosos – exatos 6.018 anos. E não os quase 5 bilhões, desde que o Sistema Solar tomou forma a partir de uma nebulosa deixada pela morte de uma estrela de grande massa, quando a Via Láctea, a galáxia que abriga o Sol e seu colar planetário, ainda era jovem.
Como a ciência demonstrou a idade da Terra, refutando a interpretação do bispo Ussher e dos que o seguiram?
Há mais de uma maneira de fazer isso, mas a descoberta da radioatividade, no século 19, desempenhou um papel fundamental nesse processo. Determinados elementos químicos, como o urânio, se decompõem (decaem) dando origem a outros. Na Natureza, um bloco rochoso que contenha urânio, ao final de certo tempo, terá apenas metade dele. Esse tempo é chamado de meio-vida. Elementos químicos de meia-vida curta, de dias ou semanas, são utilizados, por exemplo, para diagnóstico clínico de uma série de doenças.
Precisão do relógio atômico
Se a Terra for considerada um bloco rochoso cósmico, de 12.400 km de diâmetro, com base no urânio de que ela dispõe é possível calcular sua idade e, neste caso, os dados apontam para 4,6 bilhões de anos, uma época desconcertantemente mais remota que a apurada pelo bispo.
Inúmeras outras evidências apontam para uma Terra mais velha, com história mais fascinante e complexa do que sugere a linguagem poética da mitologia religiosa. A alegoria é a linguagem dos mitos e desconhecer essa situação e tratar relatos ao pé da letra conduz a absurdos que a razão não pode acatar.
Numa escola de boa qualidade, mesmo uma criança de poucos anos compreende esse raciocínio e tem condições de rejeitar a data de uns poucos mil anos para a Terra, idade fixada pelo bispo do século 17. Mas a história não é um movimento uniformemente acelerado e o retrocesso que o Ocidente viveu durante a Idade Média, com a ruína da cultura greco-romana a partir do século 5, é o bastante para demonstrar que a possibilidade de recuos para o obscurantismo é mais que pura ficção.
Jovens eleitores, e uma parcela significativa da população, incluindo pessoas com boa formação intelectual, decepcionados com o que consideram fracasso da administração atual, colocam seus ovos na cesta oferecida por Marina.
O voto é livre, ao menos teoricamente, e ninguém tem o direito de achincalhar quem quer que seja que, seguindo as regras estabelecidas, se candidate ao cargo majoritário da nação. A sociedade, no pós-autoritarismo, conquistou esse direito. Mas as pessoas também têm obrigações em relação às atuais e futuras gerações – e o artigo de Cerqueira Leite é um repto, no sentido de que elas considerem seus atos antes de depositar esperanças no que tem tudo para ser um tenebroso fracasso: o retorno a uma ordem superada, em que a inteligência fica substituída pela memória, sem perspectiva de libertação do que quer que seja.
Para quem se julga acima de qualquer suspeita, em termos de discernimento, talvez seja interessante dizer que a equação simplória do bispo Ussher foi prontamente assimilada, por exemplo, pelo astrônomo polonês Johannes Hevelius (1611-1687), conhecido como fundador da topologia lunar, mas não sem uma pequena alteração. Por uma questão de preciosismo, ele preferiu as 18 horas do 24 de outubro de 3963 a.C.
As contas de Johannes Kepler
Outro que se deixou levar pelas contas do bispo foi o grande Johannes Kepler (1571-1630) que, com suas leis de movimentos planetários, foi uma espécie de anunciador de Isaac Newton (1642-1727). Mas também Kepler fez seus ajustes e datou a criação do mundo em 27 de abril de 4977 a. C. sem um horário preciso.
Kepler é conhecido dos historiadores da ciência como “o último dos antigos e o primeiro dos modernos”. Como último dos antigos, foi praticante da ciência mágica da astrologia e com algum ganho nesta área amenizou parcialmente a miséria em que viveu por quase toda vida. Como primeiro dos modernos, coube a ele a ousadia de deformar o círculo, a forma aristotélica perfeita, para produzir um anel achatado, a elipse, e explicar a forma das órbitas planetárias em torno do Sol.
Hevelius e Kepler viveram numa época de transição. Para trás deixaram tudo o que era velho e superado. Pela frente, ao menos Kepler anunciou um futuro que ele mesmo não tinha como vislumbrar. Aquele também foi um momento histórico de rápidas e radicais transformações, tanto que coincide com a Revolução Científica, conceitos e práticas que formam a base da ciência moderna.
Esses períodos vertiginosos da história estão de volta e provocam uma derrocada da Política, etimologicamente a arte de gerir a polis, a cidade, o espaço da cidadania grega. Ao menos isso é o que se pode deduzir do pensamento do historiador inglês Tony Judt (1948-2010), em O mal ronda a Terra, com o esfacelamento do estado de bem-estar social que se seguiu à Segunda Guerra Mundial por parte de governos conservadores como o de Margareth Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan e seus seguidores, nos Estados Unidos.
O astrônomo e divulgador de ciência americano Carl Sagan (1934-1996), embora não tenha podido ler o artigo de Rogério Cerqueira Leite, curiosamente está em completo acordo com ele, um dos trabalhadores intelectuais preocupados com a consolidação e ampliação da atividade científica no Brasil. Em seus dois últimos livros – O mundo assombrado pelos demônios – a ciência vista como uma vela na escuridão e Bilhões e bilhões –, Sagan amargurou a impotência da ciência em varrer o obscurantismo da face da Terra e, em lugar da opressão da irracionalidade, permitir o florescimento de uma sociedade comprometida com a humanização, o que significa tirar partido pleno da genialidade humana na desafiadora aventura da vida.
Poder de fazer chover
Críticos mais apressados podem rispidamente argumentar – no estilo grosseiro que domina boa parte dos debates públicos – que a ciência é um luxo para o povo, que em lugar disso prefere “fumo de boa qualidade e diversão”, acusação invocada no Brasil já no final do Império.
Engano típico de pensadores apressados e superficiais. A ciência, se formos atribuir uma finalidade a ela, é responsável – como outras áreas do conhecimento, incluindo a própria religião, filosofia, literatura e artes, caso da música, pintura e até mesmo dos esportes – pela formação de um substrato mental, uma forma de conceber e projetar o mundo no espaço e no tempo. A visão fundamentalista é uma camisa de força. Ela inibe o fluxo das ideias novas, sufoca pelo formalismo sem movimento e assim elimina o viço do conhecimento.
Aberta ao mundo fascinante da ciência – em que a realidade não é menos misteriosa ou perturbadora que na religião –, Marina Silva poderia ser uma promessa do novo, que se esforça para demonstrar, e que tem lhe custado, em curtíssimo espaço de tempo, uma surpreendente coleção de disparates. Comprometida com a intepretação literal da Bíblia, no entanto, a exemplo do bispo James Ussher há quase 400 anos, a possibilidade de ela ser uma farsa, como aponta Rogério Cerqueira Leite em “Desvendando Marina”, é assustadora para uma sociedade que tem pela frente, entre outros desafios, a tarefa de recuperar o tempo perdido de 350 anos de escravidão, regime em que justiça, cidadania e bem-estar social não fazem qualquer sentido.
Marina pode rebater que não é bem assim. Que um homem de ciência como Rogério Cerqueira Leite é preconceituoso e intolerante com uma moça pobre que se alfabetizou na vida adulta: “um desses trogloditas”, como se referiu aos críticos da candidata o pastor Caio Fábio, um dos seus mentores, na edição de segunda-feira (1/9) da mesma Folha de S.Paulo. Outro dos pastores mentores de Marina, Hardman Daniel, ouvido pelo jornal, diz que ela “não precisa de guia espiritual. Ela tem o relacionamento dela com Deus. Ela conhece Deus”.
Hardman relatou, no melhor estilo bíblico, que quando sua discípula dirigia o Ministério do Meio Ambiente, “um incêndio se abateu sobre a região Norte. Nós oramos. Choveu no mesmo dia, e em um tempo que não era de chuva”, o que sugere milagre ou soluções do realismo mágico.
Se o caso relatado pelo bispo configurar milagre, talvez Marina pudesse começar, já como candidata, a recuperar as águas do reservatório da Canteira, a principal fonte de abastecimento da cidade de São Paulo. Encarnando o Prometido, típico das sociedades messiânicas, ela seria imbatível.
Evidentemente que um homem de ciência, caso de Rogério Cerqueira Leite, não levaria a sério possibilidades como essa: fazer chover sob um céu está vazio de nuvens. O pastor, tampouco, estará disposto a demonstrar que sua discípula tem, de fato, o poder de fazer chover, em especial na secura da estiagem. Para o pastor será mais conveniente tentar desclassificar o físico, alegando que ele carece de fé.
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Ulisses Capozzoli é jornalista, editor chefe da Scientific American Brasil