O rentável segmento de propagandas estreladas por celebridades e jornalistas foi sacudido pelo novo posicionamento da marca JBS-Friboi. A maior empresa de comércio de carnes do mundo contratou nomes de peso para emprestar a imagem aos seus produtos. No anúncio “Eu voltei”, o cantor e compositor Roberto Carlos, que deixou de ser vegetariano recentemente após três décadas, troca um prato de massa por um suculento filé. No anúncio, o artista não dá nenhuma garfada no bife e o assunto virou piada nas redes socais.
A campanha do frigorífico ancorada por estrelas começou no ano passado, com o veterano ator Tony Ramos. As vendas aumentaram em R$ 300 milhões. Associar um artista de prestígio a um produto comercial é uma estratégia antiga. Atores, cantores e atletas faturam altas somas com publicidade. O retorno para a imagem do produto é garantido. A ética entra em pauta quando o protagonista é um nome de peso do jornalismo. A apresentadora Fátima Bernardes, por exemplo, é a nova garota propaganda da Seara, ramo da Friboi que comercializa frangos e embutidos.
A ideia da campanha é mesclar a persuasão da propaganda e a credibilidade do jornalismo. A apresentadora deixou o Jornal Nacional há dois anos e hoje comanda um programa de variedades. Ela é coautora da peça e esta é a primeira vez em que aparece em campanhas publicitárias. Outros jornalistas já trocaram temporariamente as bancadas pelos intervalos comerciais, como a apresentadora Marília Gabriela. Fontes do setor especulam que, com as três campanhas, a JBS-Friboi aumentará em 20% o faturamento. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (18/3) pela TV Brasil examinou a ética na publicidade.
Para discutir o tema, Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro o jornalista Paulo Cesar de Araújo e o publicitário Adilson Xavier. Autor da biografia Roberto Carlos em detalhes, cuja venda foi proibida pelo cantor, Araújo é professor de História e lançou outras obras sobre música brasileira. Adilson Xavier foi integrantes do grupo FCB e presidente da Associação Brasileira de Publicidade (ABP). Recebeu diversos prêmios na área de publicidade e recentemente lançou o seu terceiro livro. Em São Paulo o programa contou com a presença de Cristina Padiglione, crítica de TV do jornal O Estado de S.Paulo. A jornalista mantém o blog Teleguiados, no site do jornal.
Criador e criatura
Antes do debate no estúdio, em editorial, Dines ponderou que a “figura humana convertida em anúncios” é comum desde a Revolução Francesa: “O garoto-propaganda e a garota-propaganda da televisão pertencem à última geração de vendedores que num mundo atravancado de apelos, para chamar a atenção e sobressair, precisam ser conhecidos, acreditados e sobretudo, admirados. Pergunta-se: quem fabrica as admirações? Os meios de comunicação, a mídia, sobretudo a mídia eletrônica. E o que é a mídia eletrônica? Uma concessão pública. Significa que às custas da sociedade fabricam-se notoriedades que logo acionarão as caixas registradoras dos famosos e célebres”. Dines ressaltou que o caso dos jornalistas que migram para a publicidade é ainda mais grave do que o de artistas.
No debate ao vivo, Paulo César Araújo destacou que foi surpreendente a contratação de Roberto Carlos por um frigorífico de projeção internacional. O artista, ao longo da carreira, sempre se mostrou sensível ao sofrimento dos animais. O “Rei”, como é apelidado o cantor pelos seus fãs, já dedicou uma canção à preservação das baleias, criticou as touradas e a caça aos pombos. Assim, há uma contradição entre o legado artístico de Roberto Carlos e a sua atuação no comercial. “Isso chocou, causou um descontentamento em vários setores da sociedade e com razão. E fazer isso por quê? Para que, a essa altura do campeonato?”, questionou o biógrafo. Ele relembrou que esta não é a primeira vez que o artista é visto em propagandas. Marcas de cerveja, cigarro e cartão de crédito já foram vendidas pelo cantor.
Dines chamou a atenção para o fato de que, no comercial, Roberto Carlos expõe a sua intimidade. Está cercado pelo filho e o empresário, acompanhados de suas mulheres. Isto é outra contradição, uma vez que o artista andou frequentando os noticiários por conta da polêmica em torno da proibição de biografias sem autorização prévia. “É um artista que foi líder de uma campanha contra a liberdade de se escrever livros no Brasil, em nome de uma tal privacidade que ele queria preservar”, criticou Paulo César Araújo. E é justamente esse artista que “vende” a sua decisão de comer ou não comer carne vermelha. Para ele, o cantor comercializa sua privacidade quando surge uma boa oportunidade.
O limite da exposição
Paulo César Araújo criticou o excesso de merchandising em programas jornalísticos ligados a esportes. Ele disse que não consegue mais assistir aos debates porque os apresentadores “perderam a noção” de limite. Na ânsia de aumentar o lucro, os canais vão acabar perdendo espectadores, na opinião do escritor. Esta naturalidade com que a propaganda é aceita deve ser contestada para não banalizar a publicidade. O escritor criticou a falta de rigor dos artistas que mudam de opinião de acordo com o produto. Um exemplo de incongruência é o ex-jogador de futebol Romário. Hoje deputado federal, o esportista coloca sua reputação em jogo quando aceita aparecer em comerciais de marcas de cerveja.
Dines perguntou como a crítica de TV Cristina Padiglione avalia o dilema ético que envolve a participação de jornalistas em comerciais. Para ela, se o profissional não atua em hard news, como a apresentadora Fátima Bernardes, a situação é menos grave do que a de Marília Gabriela, por exemplo, que comanda um programa de entrevistas. “Estando em uma bancada, eu acho impossível, inviável, acho realmente comprometedor, conflitante até o último fio de cabelo”, avaliou Cristina. A colunista enfatizou que, mesmo fora do jornalismo factual, é importante observar um possível conflito entre os interesses dos anunciantes e a notícia veiculada.
Para Cristina, é curioso que Roberto Carlos defenda de forma tão veemente a sua privacidade e aceite ser pago para dizer que voltou a comer carne. Da mesma forma, jogadores de futebol ficam indignados quando a imprensa noticia com destaque seus excessos em noitadas, mas aceitam aparecer fazendo a barba em uma propaganda de produtos de higiene. “Existe um interesse público em cima daquela figura que vai além do que o que ela faz profissionalmente”, sublinhou a jornalista. A postura de artistas como Chico Buarque é mais coerente. O compositor e cantor preserva a sua vida pessoal e não aceita propostas para estrelar campanhas publicitárias.
“O sujeito quando se submete a um bom cachê para fazer alguma coisa fora do palco, fora da cena ou fora da bancada da entrevista, ele chama muito mais a atenção do público. Isso vai vender mais revista, como vende mais carne. Uma coisa está ligada à outra”, explicou Cristina Padiglione.
Dines ponderou que a postura dos jornalistas merece ser examinada com mais profundidade porque os mesmos princípios deontológicos são usados para diferentes atividades do jornalismo, incluindo programas de entretenimento. A crítica de TV ressaltou que ao aceitar participar de comerciais, o jornalista acaba restringindo o seu campo de atuação.
Ideologia vs. cachê
Outro ponto delicado, na opinião de Cristina Padiglione, é a veiculação de campanhas políticas com celebridades. Depois de um período em que diversas as figuras públicas apareciam em de forma espontânea, como a emblemática campanha do ex-presidente Lula em 1989, houve um momento em que os showmícios viraram moda e grandes cachês ditavam o rumo dos eventos. “A pessoa que vende a sua ideologia merece que a gente vote no candidato oposto”, disse a jornalista. Ela defendeu que o apoio seja genuíno e que o artista tenha certeza do “peixe que está vendendo” ao embarcar em um projeto de propaganda política.
De sua parte, Adilson Xavier afirmou que as agências de publicidade contratam pessoas famosas para protagonizarem comerciais justamente para causar impacto nos espectadores e, dessa forma, gerar novidade. Assim, o caso da campanha da Friboi, mesmo cercado de polêmica, pode ser considerado um sucesso. As vendas aumentaram consideravelmente após a contratação dos artistas. O trio escolhido pelo frigorífico passa credibilidade e desperta simpatia no público. Xavier condenou qualquer tipo de excesso na publicidade: “O mau gosto incomoda a todo o mundo. E a falta de bom senso no uso das estratégias e das formas de interpretação, também. Se você tem uma novela cheia de merchandising mal feito, aquilo é uma agressão. Está atrapalhando a história”. Para ele, existem inúmeros exemplos de integração de produtos comerciais à dramaturgia sem que a obra seja prejudicada.
O excesso de racionalização da propaganda, que leva ao merchandising exagerado, tira o refinamento da propaganda, de acordo com a experiência de Adilson Xavier. A vida é cercada de propaganda. “As pessoas são marketing, querendo ou não. O tempo todo, quem nos observa está criando imagens nossas. Se você vai a uma rede social, hoje, está todo o mundo ali vendendo uma estratégia de marketing”, disse Xavier. Ainda mais grave é a ética por trás dos programas eleitorais para construir marcar pessoais: “Isso interfere nos destinos do país e se confunde com vida real. Quando você entra em um break comercial, todo o mundo sabe que aquilo é propaganda. Agora, quando você está se fingindo durante a vida de alguma coisa, é mentira”. Assessores de marketing hoje definem até a hora em que os candidatos devem “beijar criancinhas” no corpo a corpo.
As celebridades na propaganda
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 716, exibido em 18/3/2014
O negócio da fama e a fama como negócio fazem parte desta nossa era do espetáculo e do comércio, da qual o cantor-compositor Roberto Carlos tornou-se símbolo.
O rei, ídolo das multidões, não chega a ser um filósofo, mas ultimamente tem nos propiciado uma rica agenda de reflexões. No ano passado liderou a cruzada contra biografias não-autorizadas. Agora nos empurra para um debate sobre os abusos da propaganda.
A figura humana convertida em anúncio remonta aos tempos da Revolução Francesa com os vendedores de panfletos, os “gansos”, grasnando manchetes. Em seguida apareceram os camelôs apregoando suas ofertas. Ainda hoje no centro de algumas cidades brasileiras vemos os perna-de-pau com os reclames pendurados na frente e nas costas.
O garoto-propaganda e a garota-propaganda da televisão pertencem à última geração de vendedores que num mundo atravancado de apelos; para chamar a atenção e sobressair, precisam ser conhecidos, acreditados e sobretudo, admirados.
Pergunta-se: quem fabrica as admirações? Os meios de comunicação, a mídia, sobretudo a mídia eletrônica. E o que é a mídia eletrônica? Uma concessão pública.
Significa que às custas da sociedade fabricam-se notoriedades que logo acionarão as caixas registradoras dos famosos e célebres.
Mais grave é o caso de jornalistas e comunicadores que conquistam a credibilidade numa concessão pública para logo a desbaratarem como camelôs de carnes, frangos, embutidos e telefônicas.
O debate é apaixonante e devemos creditá-lo a Roberto Carlos – o poeta da mulher, da mãe, da baixinha, da gordinha, das baleias e agora do filé sangrento.
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Lilia Diniz é jornalista