Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O papa e as “presidentas”

Os jornais argentinos e brasileiros destacaram – e nem poderia ser de outro jeito – os encontros do papa Francisco com as presidentes Dilma Rousseff e Cristina Kirchner. Por uma estranha coincidência, ambas demoraram mais do que o previsto em saudar o novo mandatário da igreja católica – que lidera o maior número de fiéis em seus países – e marcaram presença no dia da entronização (terça-feira, 19/3).

O que os jornais não comentaram foi o fato de, pela primeira vez na história, os primeiros mandatários recebidos em privado pelo novo pontífice serem mulheres. Duas sul-americanas recebidas pelo papa, também sul-americano. Novos tempos. Mas, nesses tempos, pouco mudou na motivação das presidentes em se mostrarem ao mundo ao lado do novo papa. Cristina teve que ir, apesar de manter um relacionamento historicamente conturbado com o cardeal Jorge Mario Bergoglio. Era possível governar em permanente atrito com o cardeal arcebispo de Buenos Aires, conhecido apenas pelos seus fiéis. Mas desconhecer o novo papa seria uma ofensa grave a todos os católicos argentinos e um complicador desnecessário para seu o governo.

“Posições progressistas”

Dilma teve que ir porque, em campanha por sua reeleição, não pôde se dar ao luxo de desagradar os eleitores católicos brasileiros, que ainda continuam sendo a maioria. Conquistar a boa vontade do novo papa – esperado no Brasil em junho, para um megaevento da igreja católica – é fundamental para quem sonha com um novo mandato em 2014.

Cristina Kirschner acabou saindo-se melhor do que sua vizinha Dilma Rousseff. Vestida de preto, como manda o protocolo, a cabeça coberta (com um elegante chapéu preto em vez do véu), foi toda sorrisos nos encontros com o papa, a quem presentou com um kit de mate – que se deu ao trabalho de explicar como funciona, como se o cardeal portenho precisasse de lições sobre a bebida nacional de seu país. Enquanto isso, na Argentina, a mudança também foi sentida. Como publicou o diário Clarín em manchete (quarta-feira, 20/3): “Francisco inicia sua era com promessa de mudança”. Em matéria interna, o jornal anotou: “Jorge Bergoglio é Franscico e isso supõe uma mudança substancial na estratégia. O kirchenismo o elogia, celebra a foto com Cristina no Vaticano e deixou arquivado definitivamente seu passado, que alguns kirchenistas haviam associado com a ditadura”.

Dilma Roussef também estava de preto, mas com a cabeça descoberta. E, ao contrário da vizinha, que pediu ajuda do papa na questão das Malvinas, preferiu ensinar a missa ao vigário – como comentou o jornalista Carlos Brickmann em uma nota intitulada “A professora de Deus” (20/3):

“Pois a presidente Dilma Rousseff foi ao Vaticano dar conselhos ao papa. Besteira essa história de estudar Teologia, ler e estudar o Velho e o Novo testamentos, aprender várias línguas para melhor captar o real sentido dos textos sagrados no idioma em que foram escritos; inútil essa história de conviver com cardeais e bispos, pessoas cultas e escolhidas para dirigir uma instituição de mais de dois mil anos, e que estudam e praticam não apenas religião, mas também política. Bobagem essa história de comandar a maior rede hospitalar do mundo, a maior rede escolar do mundo. Dilma dixit: Dilma diz, Dilma sabe, Dilma ensina.

“Dilma aconselhou o papa a não apenas defender os pobres, mas também a compreender as pessoas e suas opções diferenciadas – seja lá isso o que for. A Igreja teve fases de brutal intolerância, cometeu crimes de monta (que, aliás, reconheceu, e pelos quais se desculpou), mas não é o caso, hoje em dia, quando dialoga com muçulmanos, judeus, católicos de ritos orientais, budistas e representantes de tantas religiões. Mas Dilma sabe: sem ter tido qualquer encontro com o papa, sem ter lido suas obras, acha que ele não defenderá posições progressistas.

“Conta pra nós, Dilma: para um líder religioso, que será ‘posição progressista’?”

Um milagre

Assim como Cristina, Dilma acabou percebendo que era preciso mudar o discurso e foi o que fez na quarta-feira, depois do encontro privado com o novo papa, como mostrou a matéria do UOL (20/3):

“‘Ele é uma pessoa extremamente carismática, e ao mesmo tempo com um grande compromisso com os pobres’, disse. ‘É um papa muito modesto. Ele comentou que não pode se ter orgulho nem pretensões. Deve-se lutar para fazer as coisas direito. E lembrar sempre que tem um peso nas costas’.”

A presidente contou que o papa se solidarizou com o Brasil pela tragédia do incêndio que matou 241 jovens na boate Kiss, em Santa Maria (RS), em 27/1.

“Ele disse: ‘Fiquei muito comovido com o que aconteceu em Santa Maria. Em Santa Maria, o Brasil demonstrou força e ternura’. Eu fiquei muito agradecida.”

Resta ver se a presidente brasileira vai seguir o exemplo do novo papa – que recomendou aos argentinos dar para os pobres o dinheiro que gastariam com uma viagem a Roma – e, numa próxima viagem, usar a embaixada brasileira para se hospedar em vez de gastar milhares de euros com uma imensa comitiva hospedada no Excelsior, um dos hotéis mais caros de Roma. Ensinar humildade e simplicidade aos governantes seria, sem dúvida, um milagre bem-vindo para o início de um novo papado.

Outro milagre seria a imprensa discutir, com mais frequência, o governo de duas mulheres nos maiores países da América Latina. Será que o fato de serem mulheres faz alguma diferença para os pobres a quem o papa Francisco pede atenção?

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Ligia Martins de Almeida é jornalista