O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (1/10) pela TV Brasil veiculou uma entrevista especial de Alberto Dines com o jornalista e biógrafo Lira Neto, que acaba de lançar o segundo volume da trilogia sobre a vida do ex-presidente Getúlio Vargas (vídeo com a íntegra aqui). Entre os personagens biografados por ele estão o ex-presidente Castelo Branco, o padre Cícero Romão, o escritor José de Alencar, a cantora Maysa Monjardin e o sanitarista Rodolfo Teófilo. Autor de oito livros, o jornalista também estudou Filosofia e Letras e foi professor. Trabalhou nos jornais cearenses Diário do Nordeste e O Povo, onde foi repórter, editor de Cultura e ombudsman.
Na abertura da entrevista, Dines comentou que a biografia é um gênero híbrido: para os jornalistas é literatura, para os literatos é jornalismo. Dines comentou também que as biografias fazem um grande sucesso com o público brasileiro. Para Lira Neto, hoje, o jornalismo passa por uma crise de conteúdo. Diante da concorrência dos meios eletrônicos, os jornais assistiram a uma queda vertiginosa na vendagem que levou a um enxugamento da estrutura das empresas para controlar o déficit de caixa. “Tentaram simplificar o conteúdo em busca de uma audiência mais elástica e o que aconteceu foi o efeito colateral contrário: esses órgãos começaram a se tornar irrelevantes. Portanto, agravaram a sua crise de tiragem, de vendagem”, explicou Lira Neto. De acordo com o entrevistado, os jornalistas bem sucedidos editorialmente foram no caminho oposto e apostaram no conteúdo banido das redações.
Para Lira Neto, os jornalistas que se aventuram a publicar livros na área de História não estão “invadindo o território” dos historiadores. “É uma literatura de não ficção, mas é História também”, garantiu. A tensão entre os dois segmentos perdeu o sentido, na avaliação de Lira Neto. É um problema velho e datado porque as esferas se complementam. O produto final, no entanto, é diferente do realizado dentro das universidades, dirigido a um público acadêmico. De acordo com o biógrafo, grandes jornalistas migraram das páginas dos jornais para os livros ao perceberam que o espaço para as pautas e o tempo disponível para apurar, produzir e editar estava cada vez menor. Ele assegurou que mesmo publicando livros, ainda é essencialmente um repórter. Só que agora pode trabalhar durante cinco anos em uma única pauta, como foi o caso da biografia sobre Vargas.
Do local para o global
Dines perguntou o porquê de o escritor ter optado por começar a sua trajetória como biógrafo a partir de figuras do Ceará, sua terra natal. Lira Neto explicou que, inicialmente, escolheu personagens que habitavam as suas memórias de criança ou de jovem – como o sanitarista Rodolfo Teófilo, um dos pioneiros da saúde pública, mas que é pouco conhecido. Em seguida, seu foco foi ex-presidente Castelo Branco: “Era uma espécie de autoanálise. Eu nasci nessa época, durante o golpe. Eu precisava entender exatamente o que estava acontecendo. Então, [escolhi] Castelo pela proximidade. A gente tinha no Ceará um mausoléu [dedicado] ao ditador. Eu disse: ‘Eu preciso conhecer esse sujeito’”. O escritor José de Alencar foi o próximo da lista e marcou uma espécie de prestação de contas com a sua juventude. Obrigado a ler as obras literárias de Alencar na escola, Lira Neto desenvolveu aversão pelo texto “xaropento’ do escritor. Anos mais tarde, já repórter, teve contato com as saborosas crônicas que o escritor publicava nos jornais e se encantou pelo personagem.
O fato de o ex-presidente Getúlio Vargas continuar despertando reações extremadas mesmo quase seis décadas após a sua morte, tanto dos seus admiradores quanto de seus críticos, chamou a atenção de Lira Neto. De acordo com um levantamento feito por ele, existe uma caudalosa bibliografia sobre o político, com pelo menos 800 livros publicados, mas boa parte dela oscila entre obras “devocionais” ou textos que só veem Vargas como um ditador. Ao propor a publicação da trilogia para a editora, Lira Neto procurou contemplar todas as facetas do personagem mais importante da história republicana brasileira.
“Essa dicotomia, esse pensamento binário, atrapalhou a leitura mais equilibrada ao longo do tempo do Getúlio e mesmo agora. Quando eu lancei o livro, as pessoas me perguntavam ‘qual é o seu Getúlio? O trabalhista, pai dos pobres, que modernizou o Brasil? Ou é o ditador que torturou, que perseguiu?’ Eu disse: ‘É o Getúlio e as suas circunstâncias, em todas as suas dimensões’”. Um dos aspectos que levam a essa polarização, na avaliação de Dines, é o fato de que pessoas com tendência progressista evitam elogiar personalidades inclinadas ao fascismo e vice-versa.
Lira Neto afirmou que não teve medo de enfrentar a dicotomia: “Hoje, na imprensa brasileira, a gente assiste a uma espécie de Fla-Flu, a uma espécie de Grenal, um Palmeiras vs. Corinthians odioso, onde as pessoas não conseguem mais ver os tons de cinza entre o preto e o branco. São todos com posições muito demarcadas, apaixonadas, e se perde o equilíbrio em nome de uma posição marcadamente de direita ou de esquerda. Você tem pessoas que ficam levando isso a um nível de exasperação e de histrionismo que é incompatível com a reflexão que o jornalista deve necessariamente semear”. Lira Neto contou que convidou os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva para escrever na contracapa do livro em uma tentativa de mostrar que, mesmo pessoas com perfis diferentes, podem compreender o legado de Vargas de forma menos apaixonada.
Um personagem multifacetado
Para compreender qualquer personagem, de acordo com Lira Neto, é essencial observar o contexto da época em que viveu. O entrevistado ressaltou que Getúlio Vargas “flertou” explicitamente com o fascismo e chegou a afirmar em uma entrevista que se inspirava na “renovação criadora do fascismo de Benito Mussolini”, que comandava a Itália. Já no seu segundo governo, o presidente fez aproximações pontuais com a esquerda, que o levaram à imagem de um grande líder para as esquerdas. Lira Neto contou que procurou ver Getúlio Vargas com suas contradições.
O escritor ressaltou que no início da década de 1930, quando o presidente chega ao poder, a democracia representativa estava em xeque. Parecia ser um valor “varrido para a lata do lixo” e os regimes totalitários fascinavam as massas. A crise de 1929 abalara o sistema financeiro e suas consequências eram sentidas por todo o mundo. “Surgem as tentativas de antídotos. Na Europa, começam a pipocar os regimes totalitários. É a época da ascensão de Hitler na Alemanha”, relembrou o escritor. No plano nacional, vigorava a ideia de que as elites tinham o dever de conduzir o povo. Naquele momento, a palavra ditadura sequer tinha um valor negativo.
“Quando você está biografando alguém, você não está biografando só um indivíduo, [mas] uma época. Para compreender Getúlio dentro do seu tempo você tem que abrir um pouco o leque. Qual o papel do biógrafo? Compreender o pano de fundo histórico no qual o personagem está inserido e perceber de que modo os acontecimentos políticos, sociais, econômicos daquela época impactaram a trajetória de Getúlio. E, ao mesmo tempo, compreender na dimensão da vida privada desse homem, na esfera cotidiana, de que forma esses acontecimentos foram também determinantes para sinalizar algumas de suas decisões públicas”, sublinhou Lira Neto. Outra característica importante para um biógrafo é se deter em detalhes que não chamariam a atenção de profissionais de outras aéreas. Um exemplo é a baixa estatura do presidente Vargas, examinada por Lira Neto em sua biografia.
Solução planejada
Lira Neto comentou que o traço suicida de Vargas pode ser identificado décadas antes de sua morte. O escritor contou que a primeira anotação no diário do presidente, em outubro de 1930, já apontava que o “sacrifício pessoal” poderia lavar a sua honra em uma possível derrota. Em 1942, quando o Brasil declarou guerra às potências do Eixo, o presidente escreveu um nítido bilhete de suicida. “Naquele momento, em 1942, quando ele decide pelos Aliados, ele diz: ‘Somente o meu sacrifício pessoal salvará a minha honra de um possível erro que eu esteja levando o meu país’”, exemplificou o entrevistado. De acordo com Lira Neto, em 1954, quando o presidente decide por fim à própria vida, ele tinha consciência da eloquência do gesto.
Dines relembrou que o governo Vargas teve episódios sangrentos, como o da deportação de Olga Benário Prestes, torturas e muitos outros. Perseguição a adversários políticos e censura à imprensa marcaram o governo Vargas, na avaliação de Lira Neto. “Foi um período realmente muito nebuloso na trajetória de Getúlio, que os getulistas preferem passar ao largo e os antigetulistas fazem questão de ressaltar. Mas, sem dúvida, no porão dessa ditadura, as ordens partiam do [chefe de polícia] Filinto Muller, o grande executor dessa política de repressão policial”, lembrou o escritor. Lira Neto destacou que o presidente chegou a ser confrontado pela própria família e por aliados sobre a forte repressão, inclusive a professores acusados comunismo. Na maior parte das vezes, o presidente se isentava da responsabilidade.
A posição da imprensa durante a ditadura Vargas foi, na opinião de Lira Neto, de uma “submissão voluntária”. Havia questões burocráticas e financeiras com as quais os jornais precisavam conviver. Se as publicações tentassem resistir, o suplemento de papel era cortado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). No médio prazo, a publicação podia ir à falência. “Ao mesmo tempo em que havia aquele tacão da censura, havia a acomodação à censura, mas havia também um fenômeno muito típico que era a cooptação dos intelectuais e dos escritores”, detalhou o biógrafo. Um exemplo foi a eleição do presidente para a Academia Brasileira de Letras (ABL) em troca da concessão do título de propriedade da sede. Enquanto alguns intelectuais padeciam nas prisões, outros serviram ao regime, como o maestro Villa-Lobos.
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Lilia Diniz é jornalista