Após a polêmica, quase sem fim, entre lideranças políticas, ambientalistas, produtores rurais e acadêmicos, a imprensa cessou o alarido sobre o projeto de transposição do rio São Francisco, principalmente quando persiste a condenação ao governo federal: a implantação, já em andamento, pode pôr em risco a quantidade de água, sem medidas concretas de revitalização.
A badalação de 100 anos – desde o Império que se propaga a transferência de um pedaço do rio São Francisco para os estados do Nordeste setentrional – transformou o projeto num dos maiores mitos do país, somente igualável à rodovia Transamazônica pelas suas proporções gigantescas.
À primeira vista, demonstrar reação ao projeto pode parecer desconfortável, pois é dissecado como um dos instrumentos para estancar a estiagem no semi-árido. Porém, não faltam argumentos contrários à obra: os gastos têm força para bombear mais de R$ 20 bilhões dos cofres públicos. As contradições na análise técnica perduram em cena, sobretudo quando se avalia o atendimento às populações marginalizadas.
Politicamente, o projeto não condiz com o raciocínio lógico, pois é semente de conflitos entre estados do Nordeste, além da hipótese de comprometimento da vazão na calha do rio – e as bacias hidrográficas receptoras apresentam disponibilidade per capita semelhante à dos moradores às margens do São Francisco.
Aventura desastrosa ou registro histórico?
A obra envolve impactos ambientais, econômicos, políticos e sociais. Contudo, os órgãos de difusão da informação não provocaram mais ruído, estabeleceram silêncio sobre o assunto, quando homens e máquinas já operam no espaço demarcado pelo projeto.
As divergências de natureza política, interesses econômicos implícitos, ausência de consenso técnico entre especialistas ainda sobrevoam a idéia articulada na administração Fernando Henrique Cardoso. Entretanto, nada mais sensibilizou a mídia para bisbilhotar o que está ocorrendo na mudez do próprio governo.
No México, existe a tragédia da transposição do rio Colorado: as águas empacam a 100 quilômetros do mar, produzindo a salinização de terreno fértil. Outro exemplo da intervenção humana nos recursos hídricos: o rio Amarelo, China, detém-se a 550 quilômetros da foz, sem tocar no oceano até nove meses do ano. Resultado: milhões de pessoas abandonaram seus lares. O malogro clássico: entre o Uzbequistão e o Cazaquistão, Ásia Central, o Mar de Aral possuía 66 mil quilômetros quadrados – e o desvio das águas para irrigação reduziu-o a um terço do tamanho original. O fiasco de engenharia impactou a economia regional, especialmente a pesqueira. A população convive também com doenças disseminadas pelas toneladas de sal e pesticidas, sopradas pelos ventos.
Talvez a abstenção voluntária de falar da imprensa esteja sendo reservada para escrever sobre a mais nova aventura desastrosa do ser humano ou possibilitar o registro histórico para a posteridade do feito memorável de um governo, que já se mira como lendário.
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Economista e professor universitário, Belo Horizonte, MG