O movimento pela redução das tarifas de transporte público deveria induzir a um olhar mais criativo e menos doutrinário sobre questões de economia e política associados a fenômenos sociais. No entanto, a leitura das muitas dezenas de páginas publicadas pela imprensa brasileira no final de semana e na segunda-feira (24/6) mostra que o jornalismo segue um padrão conservador e se recusa a colocar em dúvida os dogmas que sempre orientaram sua interpretação da realidade.
Há uma fartura de dados, entrevistas, análises e reflexões que poderiam produzir uma sintonia maior entre o discurso jornalístico e o que dizem as ruas, mas a opção dos editores é reafirmar suas próprias crenças.
Seria de se esperar que a expansão dos protestos, que surpreendeu tanto os governantes como os intelectuais de todas as colorações, inspirasse questionamentos mais profundos do que a surrada percepção de que as instituições republicanas se descolaram de sua base social.
Mas a resposta mais comum para o espanto provocado pelas manifestações que tomaram muitas cidades brasileiras é a repetição de bordões que nada acrescentam ao debate. Mesmo algumas afirmações sintonizadas com certas terminologias contemporâneas, como a referência ao “novo mundo da aldeia global”, parecem envelhecidas quando colocadas a serviço de opiniões conservadoras.
Soam ainda mais extemporâneos certos mantras seculares, que as repetidas crises do capitalismo enterraram há décadas. Por exemplo, a afirmação “não existe almoço grátis”, atribuída ao economista Milton Friedman, pipocou nas redes sociais e acabou num artigo da revista Época, para justificar a opinião segundo a qual o mercado é que deve regular o preço de tudo. Ora, se há alguma certeza possível na interpretação do que diz a voz das ruas, é que não se pode repassar indefinidamente para o cidadão o custo dos serviços públicos. Em algum ponto dessa equação alguém está comendo o almoço de alguém.
No meio dos relatos sobre as passeatas e as especulações sobre a origem dos recursos necessários para conter o preço das passagens, os jornais já lembraram, por exemplo, que está em curso no Ministério Público de São Paulo uma investigação que apura fraudes em um dos maiores consórcios de empresas de ônibus da capital paulista.
Se o sistema não consegue lidar com a simples contabilidade de entrada e saída de dinheiro, não há como justificá-lo e faz sentido, sim, discutir uma hipótese que não seja simplesmente mandar a conta para o usuário.
O foco das manifestações
De certa maneira, a revista Época se redime, nesta semana, da indigência com que havia tratado o assunto na edição anterior, quando tentou fazer um perfil dos manifestantes em meia dúzia de páginas cobertas de generalidades. Sua edição especial é um avanço, apesar da capa com a bandeira rasgada representar um delírio de demagogia barata.
Os jornais também dão um passo atrás e vasculham dados, imagens e declarações para identificar alguma conexão entre a diversidade das reinvindicações e possíveis respostas das instituições públicas.Registre-se o ensaio fotográfico produzido pela revista sãopaulo, da Folha, conduzido pelas várias palavras iniciadas com a letra “V” que marcam o movimento: violência, visões, vingança, versos, vovós, versões, vândalos, viral.
Infelizmente, jogos de palavras podem produzir bom entretenimento, mas não são suficientes para estimular a compreensão. Assim como a teoria do homo œconomicus, berço da frase segundo a qual “não existe almoço grátis”, há muito deixou de ser adequada para explicar a complexidade humana, também o olhar que se considera “pós-moderno” ficou pendurado no horizonte, onde não consegue vislumbrar nada além do vazio de significado.
Então, seguimos num contexto no qual a ação política de massas balança as estruturas do poder mas ninguém sabe definir seus contornos ou prever sua evolução. No entanto, há um ponto concreto onde todas as reivindicações encontram seu lugar comum: os manifestantes não usam palavras de ordem subjetivas e, mesmo que sua pauta pareça uma enorme lista de pedidos de Natal, todas as demandas têm um foco.
Os ativistas querem o básico: partidos que funcionem como partidos e não como balcões de negócio; um Judiciário que pratique a Justiça e não seja palco de conchavos de advogados; governantes que tenham coragem de bancar um projeto de país.
Como sempre, o diabo mora nos detalhes. Como apontou no domingo o colunista Elio Gaspari, na Folha de S.Paulo e no Globo, corremos o risco de repetir a História, cinquenta anos depois do golpe de 1964 e 25 anos depois da invenção de Fernando Collor de Mello: segundo Gaspari, o vírus do messianismo se aloja na toga do ministro Joaquim Barbosa, e a solução populista espreita por uma oportunidade.